Violações dos direitos de povos e comunidades tradicionais, promovidas pelo Governo do Estado de Minas Gerais, ao regulamentar a consulta e consentimento livre, prévio e informado através do Decreto 48.893 de 11 de setembro de 2024

 

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio de seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, Comitê Quilombos e o Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (OPCPLI), vem a público externar forte preocupação pelos atos recorrentes de violação ao direito à Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) por parte do Estado de Minas Gerais.

No dia 11 de setembro foi publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais o Decreto 48.893 de 11 de setembro de 2024,  que dispõe sobre a Consulta Livre, Prévia e Informada de que trata o artigo 6 da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Esta é  a segunda tentativa do governo mineiro de, a propósito da regulamentação da Consulta, por meio de manobras normativas do Poder Executivo, alterar e simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos econômicos com prejuízos aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Tais manobras já foram objeto de Notas Técnicas e manifestações de repúdio[1] realizadas por meio da Associação Brasileira de Antropologia, de instituições e associações científicas, entidades civis, movimentos sociais e entidades representativas dos sujeitos coletivos diretamente atingidos, Povos e Comunidades Tradicionais do estado de Minas Gerais. Em 2023, mais de 100 lideranças de povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais se reuniram em um Encontro para pedir formalmente a revogação da Resolução n. 01 de 04 de abril de 2022[2], anterior ao Decreto 48.893/24.

O Decreto 48.893/24 foi publicado pelo governador Romeu Zema simultaneamente à realização da Audiência Pública sobre “Regularização Fundiária e Terras da União”, organizada pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e o Congresso Nacional, durante o VII Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em Montes Claros/MG. Esse evento reuniu dezenas de povos e comunidades tradicionais de todo o Brasil e de outros países, com participação ativa do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG), ambos responsáveis pelas políticas de desenvolvimento sustentável para esse segmento. Eles foram surpreendidos pela publicação do referido decreto, uma vez que tal matéria sequer foi tratada no âmbito da CEPCT-MG, onde têm assento representantes desses povos, constituindo instância de controle social legítima para tratar de temas de seu interesse.

A ausência de representante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (SEDE-MG), convidado para a audiência pública, reflete o posicionamento político do governo. Cabe ressaltar que a SEDE-MG é a atual responsável pela regularização fundiária de territórios tradicionais de PCTs no estado e tem sido alvo de denúncias[3] por esse segmento, relacionadas ao assédio e à pressão indevida às comunidades tradicionais de MG. A condução dos processos de regularização fundiária pela Secretaria vem ocorrendo sem transparência e com clara violação dos direitos à consulta e consentimento, previstos no art 6o da Convenção 169, o mesmo artigo que o governo tenta normatizar com este decreto.

O Decreto 48.893/24, uma reedição simplória da Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD no 01 de 4 de abril de 2022, revogada no mesmo ano com expressiva mobilização da sociedade, a) viola novamente o direito à autodeterminação dos povos; b) impõe uma visão restritiva de ordenamento territorial, reduzido a terras indígenas e quilombolas delimitadas e homologadas pelo Estado, ou a pontos geodésicos, atendendo a interesses de desafetação dos empreendimentos;  c) fixa uma faixa arbitrária de 3 quilômetros para exigibilidade de consulta para atividades passíveis de licenciamento ambiental; d) desconsidera o direito  à consulta das comunidades que estão em área urbana; e) restringe e viola os parâmetros internacionais consolidados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em relação ao direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado; f) visa regulamentar e restringir os procedimentos de CCPLI sem previamente consultar os povos sobre o novo ato administrativo ou legislativo que lhes afetem diretamente. Ou seja, tanto a Resolução revogada quanto o novo Decreto necessariamente teriam que ser objeto de consulta prévia, livre e informada às entidades representativas dos Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais.

Além de violar uma série de normas nacionais e internacionais, o Decreto 48.893/24 desconsidera todo o processo de conquista dos direitos coletivos dos PCTs, já consolidados. É visível a inversão de competência em relação à CCLPI, que poderá ser conduzida pelos próprios empreendedores privados, – o que é uma grave afronta à Convenção 169 da OIT-, como pela SEDESE-MG, instância que vem desprezando normas e procedimentos nacionais e internacionais que protegem tais direitos.

Ressaltamos que a consulta deve ser prévia, livre, informada, efetuada a partir de protocolos construídos pelos próprios PCTs e garantida pelas instituições representativas governamentais. A CCPLI não constitui mera formalidade procedimental, a ser instrumentalizada em favor de interesses privados e em detrimento dos direitos coletivos e jamais poderá ser conduzida pelo empreendedor, pois trata-se de uma competência exclusiva do ente estatal que não poderá ser transferida para empresas que possuem o interesse no empreendimento. Tais normatizações do Estado de Minas Gerais não somente violam direitos já assegurados, como oneram os cofres públicos com a construção de legislações arbitrárias e infundadas. É uma premissa constitucional que os entes federados, neste caso os estados, não podem legislar sobre matéria federal.  Trata-se, portanto, de uma atitude oportunista e casuística, paga pela sociedade.

Destaca-se que, o art. 6º, 7º e 16º da Convenção 169 da OIT, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, dispõe sobre a Consulta e o Consentimento Prévio Informado. O direito de consulta prévia, nos termos da Convenção, é auto aplicável, devendo o Estado respeitá-lo e cumpri-lo. Cada povo, comunidade ou grupo social com identidade cultural e étnica diferenciada afetado por empreendimento, medida administrativa ou legislativa, tem o direito de decidir, da forma mais autônoma possível, dizendo como quer ser consultado, de que forma, em que linguagem, e respeitando as temporalidades necessárias pelas comunidades. Vale salientar, ainda, que o direito ao consentimento está, também, garantido na Convenção 169 da OIT, e dele se extrai o direito de decidir em relação ao modelo de desenvolvimento que lhes afetem. O direito ao consentimento, conforme entendimento da jurisprudência da Corte Interamericana, é requisito para todo processo de consulta, sobretudo quando houver ameaça à vida e integridade física e cultural dos povos e comunidades tradicionais e ameaça de deslocamento forçado de seus territórios.

Frente a esse contexto, o Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, juntamente com o Comitê Quilombos e o Observatório de Protocolos de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado, rede de pesquisa com abrangência em nível nacional, vêm por meio deste instrumento requerer às instituições públicas do Estado de Minas Gerais e em âmbito federal, a adoção das medidas administrativas e/ou judiciais cabíveis, que visem a imediata REVOGAÇÃO do decreto 48.893 de 11 de setembro de 2024, bem como:

  • a apuração acerca da violação de direitos de consulta às comunidades pela SEDE-MG, nos termos das graves denúncias publicizadas durante audiência pública realizada no VII Coloquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em 11 de setembro de 2024, na Unimontes, em Montes Claros (MG);
  • a apuração de possíveis irregularidades no processo de elaboração dos protocolos de consulta realizadas por empresas no âmbito de processos conduzidos pelo governo mineiro, a exemplo do licenciamento ambiental do Rodoanel, e de Planos de Manejo de Unidades de Conservação, entre outros;
  • a garantia das condições necessárias de tranquilidade para que a construção do protocolo de consulta e consentimento de PCTs possa ocorrer de modo efetivamente livre e autônomo;
  • a garantia de que o dever e a obrigação estatal de consultar os povos não seja transferido para empresas privadas, em observância ao que dispõe e recomenda a OIT;
  • o total respeito à temporalidade dos PCTs por todas a instituiçoes públicas no ambito do legislativo, executivo e judiciário, para que os povos possam conduzir os complexos processos de compreensão e engajamento por meio dos quais devem elaborar, cuidadosa, consciente e coletivamente, os seus protocolos autônomos de consulta;
  • a garantia de que qualquer novo ato administrativo estadual que regulamente ou disponha sobre o direito à consulta e consentimento venha necessariamente a ser objeto de consulta prévia, livre e informada em um processo consultivo com participação ampliada de entidades representativas de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais, sob pena de nulidade e revogação do ato administrativo;
  • a total garantia, aos PCTs, do exercício do direito à consulta e ao consentimento prévios, livres e informados, nos termos da Convenção 169 da OIT.

Assinam:
Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos – ABA.
Comitê Quilombos – ABA.
Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado – OPCPLI.

Brasília, 18 de setembro de 2024.

Leia aqui a nota em PDF.

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[1] NOTA TÉCNICA SOBRE A RESOLUÇÃO CONJUNTA SEDESE/SEMAD Nº 01, DE 04 DE ABRIL DE 2022.
Fonte: https://portal.abant.org.br/nota-tecnica-sobre-a-resolucao-conjunta-sedese-semad-no-01-de-04-de-abril-de-2022/; NOTA PELOS DIREITOS E PROTEÇÃO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE QUEIMADAS (SERRO/MG) NO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PROTOCOLO DE CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA. Fonte:https://portal.abant.org.br/nota-pelos-direitos-e-protecao-da-comunidade-quilombola-de-queimadas-serro-mg-no-processo-de-elaboracao-do-protocolo-de-consulta-livre-previa-e-informada/; REPÚDIO À FORMA COMO VEM SENDO CONDUZIDO O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DE PLANOS DE MANEJO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO PELO INSTITUTO ESTADUAL DE FLORESTAS DE MINAS GERAIS (IEF-MG). Fonte:http://www.abant.org.br/files/20220315_623099e951574.pdf Entre outras notas que podem ser encontradas no site da ABA.NOTA TÉCNICA SOBRE A RESOLUÇÃO CONJUNTA SEDESE/SEMAD No 01, DE 04 DE ABRIL DE 2022 QUE REGULAMENTA A CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA: https://coletivomargaridaalves.org/wp-content/uploads/2022/04/NOTA-TECNICA-CONJUNTA-SOBRE-A-RESOLUCAO-RESOLUCAO-CONJUNTA-SEDESE_SEMAD-No-01-DE-04-DE-ABRIL-DE-2022.pdf
[2] NOTA TÉCNICA SOBRE A RESOLUÇÃO CONJUNTA SEDESE/SEMAD No 01, DE 04 DE ABRIL DE 2022 QUE REGULAMENTA A CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA: https://coletivomargaridaalves.org/wp-content/uploads/2022/04/NOTA-TECNICA-CONJUNTA-SOBRE-A-RESOLUCAO-RESOLUCAO-CONJUNTA-SEDESE_SEMAD-No-01-DE-04-DE-ABRIL-DE-2022.pdf
[3] Vide Carta do Simpósio Especial “Territórios em Movimento, Conflitos Socioambientais e Regularização Fundiária”, do VII Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, realizado em. Montes Claros, dia 09 de setembro de 2024 e lida na audiência pública, mencionada acima, por representante do Quilombo da Lapinha-MG. Fonte: https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/Comunidades-serao-beneficiadas-com-retomada-da-regularizacao-fundiaria/

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