A prisão de MC Poze do Rodo, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, criticada por movimentos negros e contestada por juristas e pesquisadores, revela a face brutal do racismo sistêmico no Brasil. Trata-se de mais do que uma ação judicial contra um indivíduo: é a reafirmação simbólica de que corpos negros, sobretudo, aqueles que emergem das periferias urbanas e ocupam os palcos da cultura popular, continuam sob constante vigilância e repressão.
Conduzido algemado, descalço e sem camisa, o artista foi exposto em imagens midiáticas que o associam imediatamente à criminalidade, antes mesmo de qualquer julgamento. Sua prisão tornou-se espetáculo público, pedagogia do medo dirigida à juventude negra: um recado de que nem o sucesso artístico, nem o reconhecimento cultural, garantem proteção contra um Estado estruturalmente racista.
Esse episódio se inscreve em uma longa genealogia da criminalização da cultura negra no Brasil. Sambistas como Bezerra da Silva foram acusados de fazer apologia ao crime por suas composições, que apenas retratavam — com ironia e crítica — a realidade das favelas. O mesmo aconteceu com a capoeira, com as religiões de matriz africana e, mais recentemente, com o rap e o funk carioca, que, mesmo sendo expressão legítima da cultura popular, segue sendo tratado como caso de polícia.
Assim, o que vemos na prisão de MC Poze não é apenas a criminalização de um corpo negro: é a tentativa de silenciar uma expressão artística, de anular uma estética, de reprimir uma linguagem. O funk, como o samba antes dele, é condenado não por seu conteúdo, mas por sua origem periférica, negra e insurgente. Esse caso se torna ainda mais gritante quando contrastado com o tratamento dispensado, no mesmo período, ao médico Bruno Tomiello, branco e de classe média, que confessou o assassinato da adolescente Kethlyn Vitória. Ainda que indiciado por feminicídio e outros crimes graves, sua apresentação à polícia foi discreta, sem exposição midiática de sua imagem algemado ou humilhado, e sua versão dos fatos foi amplamente veiculada com ar de compreensão e humanidade. Outros exemplos recentes de figuras públicas brancas — como Fernando Collor, Pedro Brennand e Roberto Jefferson — também evidenciam esse padrão: mesmo diante de crimes gravíssimos, o tratamento recebido pelas autoridades foi comedido, preservando sua dignidade pública.
Como lembra o jurista Pedro Abramovay, o princípio jurídico do in dubio pro réu (na dúvida, em favor do réu) parece não valer para a população negra. Vivemos, isso sim, sob a lógica do in dubio contra réu: pessoas negras, indígenas, quilombolas, pobres, trans —
somos culpados até que provemos o contrário. Trata-se de uma racionalidade necropolítica, que não apenas pune, mas escolhe quais vidas podem ser destruídas ou eliminadas, e quais merecem ser protegidas.
O Comitê Antropologia Negra da ABA denuncia esse padrão de repressão que não se limita à prisão física, mas se estende à tentativa de domar e deslegitimar a produção cultural negra. Ao transformar o palco em tribunal, o microfone em arma e a canção em confissão de culpa, o Estado reafirma que há um limite intransponível para o sucesso negro que não se curva às normas da branquitude.
Reafirmamos nosso compromisso com as expressões culturais negras como formas legítimas de crítica, existência e resistência. Nos solidarizamos com MC Poze do Rodo e com todas as juventudes negras perseguidas por ousarem cantar sua verdade.
Brasília, 03 de junho de 2025.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e seu Comitê Antropologia Negra Brasileira
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