A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem se manifestar publicamente a respeito de uma situação envolvendo a judicialização de conflito acadêmico entre duas associadas. A ABA foi procurada por uma das partes após a decisão judicial e, em resposta a esse acontecimento, buscou detalhes sobre o caso, incluindo os meandros do processo judicial, com a materialidade dos fatos, argumentos, hermenêuticas jurídicas e científicas. A ABA expressa seu pesar pelo fato de que controvérsias e dissensos acadêmico-científicos tenham resvalado para a esfera judicial. Lamenta ainda não ter sido provocada desde o início do conflito, quando poderia ter contribuído com sua expertise, sempre orientada pelos parâmetros acadêmico-científicos.
A ABA defende, de forma veemente, a liberdade de cátedra e a prática acadêmica diligente. A Associação entende que diferenças e discordâncias teóricas, conceituais, epistêmicas e metodológicas devem ser abordadas dentro da comunidade acadêmica, sem ataques pessoais e por meio dos diferentes expedientes próprios ao universo acadêmico-científico. Isso porque o campo científico opera a partir de uma lógica distinta daquela vigente no campo jurídico. Conforme demonstrado por diversas pesquisas empíricas, o Direito no Brasil opera orientado pela lógica do contraditório – “que se explicita pela promoção de um dissenso contínuo entre teses opostas, o qual só se interrompe através de uma autoridade externa às partes, que lhe dá fim e declara uma tese vencedora e a outra, vencida”. (KANT DE LIMA, 2009, p. 29) –, ou seja, na busca por uma “verdade real”, consagrada por meio das decisões judiciais. Já a ciência antropológica opera a partir da exposição de argumentos mediante trabalho de pesquisa empírica, visando à pluralidade e complexidade de perspectivas e a relativização de verdades provisórias. Nossa postura, por isso, é anti-judicializante: consideramos que o campo da antropologia é fortemente desenvolvido no país e dotado da capacidade de lidar autonomamente com suas produções e eventuais controvérsias. Aliás, estas últimas integram e alimentam a própria produção científica.
Neste contexto, a decisão judicial que determina a suspensão da comercialização e da divulgação do livro em litígio não apenas se configura como uma forma de censura à produção científica, mas atinge indistintamente a totalidade dos artigos, o que representa perda acadêmica irreparável, visto tratar-se de coletânea sobre um tema de maior relevância ao debate público. Consideramos que tal decisão, ao invés de ampliar, prejudica os debates que poderiam ser desdobrados a partir do livro e do caso, por exemplo, acerca da produção etnográfica sobre religião e política, público e privado e, em última instância, sobre laicidade e o direito humano à pluralidade de vozes como fundamento da democracia. Dessa maneira, identificamos atravessamentos político-analíticos que tais tipos de descrições envolvem, acerca da ética e integridade científica e da consolidação de boas práticas de pesquisa etnográfica. Em ciência, um texto acadêmico pode ser sempre respondido com outros textos acadêmicos, não com o cerceamento de uma obra. Tudo isso com base no rigor acadêmico e no respeito entre pares.
Por último, cabe salientar os avanços antropológicos atuais em relação a interpretações de cunho simplista, que evocam uma suposta oposição dicotômica entre universalismo, de um lado, e particularismos culturais, de outro. Há um entendimento hoje na disciplina de que as formas de interação e de comunicação entre povos, culturas e etnias não raro são constituídas por processos permeados por relações de poder, as quais somente se fazem compreender e, eventualmente, explicar, a partir de dados etnográficos, e menos por meio de afirmações genéricas, orientadas por posicionamentos estabelecidos de maneira apriorística. Assim, muitos antropólogos têm observado o processo recente de construção política da categoria “infanticídio indígena” no país. Portanto, considerando o conhecimento antropológico acumulado sobre o tema e o compromisso ético e científico da ABA, rechaçamos enfaticamente a retomada do PL 119/2015 no Senado Federal e ficaremos atentos às tentativas de criminalização dos povos indígenas neste debate.
A ABA reitera o seu compromisso com a produção de conhecimento alicerçada em etnografia – como método e teoria-, com a discussão acadêmica como base para o avanço do conhecimento científico e com a autodeterminação dos povos.
Brasília, 19 de setembro de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA
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