A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) manifestam grande preocupação com o destino das terras indígenas em julgamento no STF e demandam a rejeição da tese do marco temporal e das 19 condicionantes adotadas no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
No próximo dia 7 de junho de 2023, será retomado no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1017365, de interesse dos Xokleng, em razão de disputa sobre a posse da terra que tradicionalmente ocupam, denominada Terra Indígena La Klãnõ. O proposto no voto do Ministro Nunes Marques, divergente do voto do Relator, Ministro Edson Fachin, pretende que o STF adote como tese de repercussão geral (isto é, para todas as terras indígenas no país), a “tese do marco temporal”, pela qual só poderão ser demarcadas as terras nas quais havia presença de indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, além das 19 condicionantes adotadas no julgamento da ação popular contra a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol.[1]
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), amicus curiae no Processo, apresentou um conjunto de reflexões antropológicas circunstanciadas, em outubro de 2020, com o propósito de contribuir com a análise e interpretação das questões em pauta[2]. As Associações Científicas aqui subscritas reiteram o conteúdo já apresentado pela ABA, conforme síntese a seguir:
1) A tese representa um equívoco na compreensão do modo especificamente indígena de ocupar e conceituar seus territórios. Baseia-se numa visão estática do espaço e que contraria o modo dinâmico dos indígenas ocuparem o território, reconhecido pela Constituição, segundo a qual a ocupação tradicional de uma terra indígena deve levar em consideração 4 elementos: espaços para habitação permanente; para atividades produtivas; para a reprodução física e cultural; e os necessários para a preservação ambiental. Cada um destes espaços é equivalente entre si e ocupado de forma diferenciada ao longo do tempo. Neles, podem ocorrer rotações de cultivos, diversificação de atividades de caça, pesca e coleta e, eventualmente, mudanças nos locais de construção das residências, seja para acompanhar estas atividades, seja por fatores cosmológicos/religiosos ou por motivos específicos de organização social. A tese desconsidera pressões externas, derivadas de políticas de Estado, conflitos fundiários ou introdução de doenças que podem afetar a dimensão demográfica e a distribuição dos indígenas nos territórios. Desconsidera, ainda, que um território não se caracteriza apenas por suas qualidades econômicas, mas também por aquelas simbólicas, permitindo o desenvolvimento de um modo específico de vida.
2) A adoção da tese teria consequências profundamente negativas sobre a regularização fundiária de processos demarcatórios, principalmente fora da região amazônica. De fato, nas demais regiões brasileiras, a soma das terras indígenas em todas as fases de regularização constitui apenas 1,7% do total das terras indígenas existentes no país.[1] Nestas, verificam-se os mais intensos e acirrados conflitos, especificamente em termos de superfície abrangida, decorrentes de processos históricos de expropriação recorrentemente reclamados pelos povos indígenas.
3) Por fim, a tese desconsidera que as identificações e delimitações das terras indígenas não são realizadas a partir de visões abstratas sobre territórios genéricos; trata-se, diversamente, de demandas concretas, de grupos domésticos específicos, de parentelas e comunidades locais, pertencentes a cada povo indígena. Assim, as consequências da decisão judicial que está em pauta não seriam tampouco genéricas. Ela incidiria sobre a vida de coletividades concretas, na maioria dos casos, em condições precárias de vida.
As Associações Científicas subscritas demandam, portanto, que os processos de identificação e de demarcação das terras indígenas sejam realizados de acordo com o que está propugnado na Constituição Federal de 1988 – em vigor – rejeitando-se, definitivamente, a tese do marco temporal e as 19 condicionantes adotadas no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Brasília, 22 de maio de 2023
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Academia Brasileira de Ciências (ABC)
Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
Leia aqui a nota em PDF.
[1] Consultar Petição 3388 no STF em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/pet3388ma.pdf.
[2] Disponível em: http://www.abant.org.br/files/20230517_646530b4e56d4.pdf
[3]Ver http://www.abant.org.br/files/20230517_646530b4e56d4.pdf, assim como https://pib.socioambiental.org/pt/Situa%C3%A7%C3%A3o_jur%C3%ADdica_das_TIs_no_Brasil_hoje.