A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através da sua Comissão de Assuntos Indígenas, vem a público manifestar grande preocupação com o julgamento no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) de um processo judicial de 1992, que põe em discussão a posse da Aldeia Caípe, encravada na Terra Indígena Xukuru do Ororubá (em Pesqueira – PE). Trata-se da ação de reintegração de posse nº 0002697-28.1992.4.05.8300 e processos correlatos – Recurso Especial nº 646.933/PE (STJ) e Ação rescisória nº 0801601-70.2016.4.05.0000.
A gravidade do caso se dá pela discussão de uma reintegração de posse sobre uma terra indígena já demarcada, homologada e registrada como bem da União, e de usufruto exclusivo do povo indígena Xukuru.
O problema fica mais patente diante da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso do Povo Indígena Xukuru vs. Brasil. O Estado brasileiro foi condenado pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento e pela violação do direito à proteção judicial, bem como do direito à propriedade coletiva, previsto nos artigos 25 e 21 da CADH, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xukuru.
De forma precisa, o Sumário Executivo do Conselho Nacional de Justiça, que visa o monitoramento da implementação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sintetiza os encaminhamentos a serem adotados pelo Estado brasileiro, o que é declaradamente desrespeitado com os rumos que a Ação de reintegração de posse da aldeia Caípe tem assumido.
Historicamente o povo Xukuru sempre esteve presente na Serra do Ororubá e sertões adjacentes, logrando sua reprodução física e cultural mesmo quando estiveram, durante décadas, subordinados a ordenamentos sociais de sujeição e alienação material.
Abundantes registros históricos documentam a presença indígena na Serra do Ororubá, desde o século XVII. O aldeamento de Nossa Senhora das Montanhas do Ararobá, depois transformado em Vila de Índios de Cimbres, é significativo marco histórico da vasta região conhecida como Sertão do Ararobá, continuamente associado à presença indígena. Mesmo nos momentos de maior pressão contra os Xukuru sua presença numerosa foi notada, como no censo de 1872, que contabilizou uma população de 2.305 indígenas, nas paróquias de Cimbres e Pesqueira. Já nas primeiras décadas do século XX, registros de folcloristas, etnólogos e sertanistas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) atestam a continuidade física dos Xukuru na Serra do Ororubá.
Apesar de tantos registros da ocupação dos Xukuru, a instalação do Posto Indígena pelo SPI só foi realizada em 1956, após insistentes demandas das lideranças ao Governo Federal, o que incluiu diversas viagens ao Recife e ao Rio de Janeiro. Ainda assim, o processo de demarcação das terras só se iniciou em 1989, também após intensa mobilização indígena, e se arrastou até o ano de 2001, com inúmeros episódios de violência e assassinato de indígenas. Tudo isso caracteriza a lentidão e a demora do Estado em reconhecer e garantir os direitos dos Xukuru.
Ainda que subordinados aos interesses de ocupantes não indígenas que ali se instalaram, os Xukuru seguiram habitando, produzindo e reproduzindo um modo de vida singular, na região caracterizada pela serra do Ororubá, lastro sobre o qual sustentam seu direito ao território, reconhecido formalmente pelo Estado brasileiro e pela CIDH.
É de suma importância destacar que a Terra Indígena Xukuru é comprovadamente de ocupação tradicional deste povo indígena, enquadrando-se no que prevê o artigo 231 da Constituição Federal. Seu processo demarcatório foi completado em todos os procedimentos administrativos legalmente previstos, consubstanciados em detalhados estudos multidisciplinares coordenados por profissional da área de antropologia, estando a Terra Indígena Homologada e Registrada na SPU e no Cartório de Registro de Imóveis do 1º Ofício de Pesqueira.
Conceder uma reintegração de posse de uma fazenda localizada justamente na área central da Terra Indígena poderia gerar uma situação de insegurança jurídica, desconsiderando o devido processo administrativo da demarcação realizado, e podendo chegar a ferir o ordenamento constitucional brasileiro.
Compreendemos, portanto, ser mister que o Estado brasileiro, através de seu Judiciário, cumpra as medidas necessárias para garantia da segurança física e jurídica do povo Xukuru, reafirmando nesse processo os princípios constitucionais básicos da Carta Magna de 1988.
Brasília, 05 de setembro de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI)
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