Terra,
direito e poder -O latifúndio improdutivo na legislação
agrária brasileira Lígia Maria Osório Silva DPH - I. de Economia/ Unicamp
A
Modernização sob o comando da terra: os impasses da
agricultura moderna no Brasil
Veja também nota sobre Terra, livro de Sebastião Salgado editado pela Cia. das Letras.
Boletim da ABA # 27
Terra, direito e poder -O latifúndio improdutivo na legislação agrária brasileira Lígia Maria Osório Silva DPH - I. de Economia/ Unicamp A discussão atual sobre as ocupações de terras efetuadas pelo Movimento dos Sem Terra traz de volta temas recorrentes da história da apropriação territorial no Brasil. Um desses temas perenes, o latifúndio improdutivo e os meios existentes à disposição dos poderes públicos para eliminá-lo têm merecido a atenção de todos aqueles que percorreram a legislação agrária promulgada desde a época colonial até os nossos dias. Qualquer observador atento desta história por certo não deixará de notar que ela se desenrola em dois planos distintos e contraditórios: de um lado, observa-se a existência de uma abundante legislação agrária cujo objetivo foi, em diversos momentos, transformar as condições nas quais se operava a formação da propriedade; de outro, a persistência de uma ferrenha obstrução à aplicação desta legislação por setores do campo interessados na manutenção de um padrão de ocupação que tem sido responsável por um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo. A estrutura fundiária decorrente dessa história foi e continua sendo, ninguém duvida, responsável pela profunda desigualdade existente no campo brasileiro, em todas as épocas. O pesquisador interessado no debate que ora se trava em torno do latifúndio improdutivo vê-se diante de duas questões: em primeiro lugar, que meios estiveram à disposição das autoridades (coloniais, imperiais, republicanas, governos oriundos da Revolução de 30, governos militares pós-64 etc.) para recuperar e dar algum uso social à terra açambarcada para fins especulativos e não produtivos; em segundo, porque a legislação elaborada com este objetivo não é aplicada. A resposta à primeira questão está na evolução da legislação agrária, ela própria fruto da evolução das relações entre as duas camadas da população diretamente interessadas na questão da terra (os trabalhadores rurais sem terra e os proprietários latifundiários) e entre estes e os poderes públicos. A segunda pergunta é bem mais complexa, mas podemos vislumbrar um caminho de resposta nas motivações que, nos diferentes períodos históricos, levaram os poderes públicos a legislar sobre a apropriação territorial. De modo sucinto podemos indicar, na legislação agrária brasileira sobre latifúndio, cinco momentos principais. a)O regime de sesmarias. Transplantado da metrópole para a colônia, a concessão de sesmarias consistia na doação gratuita de terras em abundância a quem possuísse os meios de cultivá-la e está indissoluvelmente ligada à produção do açúcar colonial em grandes propriedades escravistas. O sistema sesmarial, na sua concepção original, imaginado para solucionar uma crise de abastecimento no reino português, tinha uma preocupação acentuada com a utilização produtiva da terra, expressa na cláusula de condicionalidade da doação, atrelada ao cultivo da terra. No entanto, nunca enquanto durou o regime de concessão de sesmarias, conseguiu a metrópole impedir a formação de grandes latifúndios improdutivos. Além daquela utilizada efetivamente de forma produtiva nas plantations, grandes extensões de terra eram apropriadas para explorações futuras. Este hábito ocorria devido ao caráter predatório da agricultura que se praticava na colônia, que esgotava rapidamente o solo e era possível graças à incapacidade da metrópole de exercer um controle estrito sobre a colônia. Nenhum dos mecanismos colocados em vigor pelas autoridades coloniais (e foram inúmeros) fez reverter esse processo. Na realidade, o aumento das exigências que cercavam a concessão de sesmarias (medição, demarcação, confirmação etc.) só serviu para indispor os colonos com a administração colonial e antes mesmo de declarada a Independência já estava decretada a morte do sistema sesmarial (decreto do Príncipe Regente de julho de 1822). Em síntese, os condicionantes da colonização, amplamente discutidos na bibliografia, levaram ao estabelecimento de grandes unidades produtivas e grandes latifúndios improdutivos. Portugal cedeu prodigamente a terra a quem quisesse e pudesse cultivá-la, mas a parte da legislação que coibia o latifúndio improdutivo nunca foi aplicada. A abundância relativa de terras e os objetivos da colonização determinaram a forma de adaptação de uma legislação concebida para a metrópole aplicada à colônia. Embora tendo suas origens no sistema sesmarial, seria injustificado atribuir a este sistema a causa da persistência do latifúndio improdutivo em épocas posteriores. Ao findar aquele período apenas uma parcela pequena do território nacional estava apropriado e restavam quantidades enormes de terras devolutas. A ausência de uma legislação que normatizasse o acesso à terra durante o tempo que decorreu da Independência à 1850, e a continuidade do padrão de exploração colonial (agricultura predatória e trabalho escravo) resultaram no florescimento sem qualquer controle do apossamento e multiplicaram-se os latifúndios improdutivos. b) A lei de terras. Em meados do século XIX, o Estado imperial elaborou a primeira legislação agrária de longo alcance da nossa história, que ficou conhecida como a Lei de Terras de 1850. Esta lei pretendeu deitar os princípios da política de intervenção governamental no processo de apropriação territorial. A lei representou uma tentativa dos poderes públicos (o Estado imperial) de retomar o domínio sobre as terras chamadas devolutas, domínio esse que lhe escapava tendo em vista a vertiginosa ocupação que se processava então sob a iniciativa privada. Tem sido justamente destacado que a motivação principal da adoção da lei estava nos desdobramentos da cessação do tráfico de escravos e no desejo de estimular a imigração estrangeira. A lei de 1850 não atingiu um dos seus objetivos básicos, a demarcação das terras devolutas, ou como se dizia na época, a discriminação das terras públicas e privadas, primeiro passo para a implementação de uma política de terras. E isto principalmente por dois motivos. Primeiro, porque a regulamentação da lei deixou a cargo dos ocupantes das terras a iniciativa do processo de delimitação e demarcação. Só depois que os particulares tivessem declarado ao Estado, medindo e demarcando, as terras que ocupavam é que este deduziria o que lhe restara para promover a colonização. Em segundo lugar, a lei não foi suficientemente clara na proibição da posse. Embora esta constasse no artigo 1º, outros artigos levavam a supor que a "cultura efetiva e a morada habitual" garantiriam qualquer posseiro, em qualquer época, nas terras ocupadas. A combinação desses dois elementos teve como conseqüência que a lei servisse, no período da sua vigência e até bem depois, a regularizar a posse e não a estancá-la. Os desdobramentos deste efeito da lei de 1850 não seriam necessariamente negativos caso não tivessem beneficiado quase que exclusivamente os grandes proprietários rurais e, ao contrário, servissem para democratizar o acesso à terra. Com a República e a passagem das terras devolutas para o domínio dos estados, agudizou-se ainda mais o efeito perverso da lei de 1850, com o agravante de que foram pouquíssimas as iniciativas no sentido do estabelecimento de uma política de colonização ou assentamento que minimamente contrabalançasse a proliferação dos latifúndios improdutivos. Protegidos pela aplicação perversa da cláusula que garantia as posses (cultura efetiva e morada habitual), multiplicaram-se os "grilos" e continuou o processo de passagem das terras devolutas para o domínio privado sem controle dos poderes públicos e sem que estes manifestassem grande preocupação com o uso anti-social das terras apropriadas. A situação social imperante no campo, neste período, caracterizada pela presença do "coronelismo", fenômeno amplamente analisado na bibliografia especializada, garantiu a permanência do modelo altamente concentrado de apropriação territorial. A promulgação do Código Civil fez aparecer uma corrente expressiva de juristas que defendia a possibilidade do usucapião das terras públicas, o que significava na prática a derrubada do artigo 1º da lei de 1850, que continuava em vigor. Esta corrente propugnava a identificação do termo devoluto a vago, o que em outros termos queria dizer que o Estado era um proprietário como outro qualquer diante das suas terras, sujeito portanto ao usucapião. A corrente contrária defendia a posição de que devoluto não era sinônimo de vago, mas de público e, também, que o Estado não era um proprietário como os outros mas sim o guardião dos bens públicos aos quais deveria dar uma destinação social. Em relação a essa matéria, e a muitas outras, a lei era ambígua e, talvez não pudesse ser de outro modo, porque tratava-se de operar a transição de um sistema concessionário de doação de terras (sesmarias) para um sistema de propriedade plena (nos termos do uso e abuso do Direito Romano). De todo modo, o fato é que uma vez expedido um título de propriedade, o Estado só poderia recuperar terras e dar-lhes outro destino através da desapropriação. Como a lei de 1850 foi servindo ao longo dos anos para regularizar a situação dos grandes posseiros latifundiários, e transformá-los, portanto, em proprietários de pleno direito, a única forma de recuperar as terras improdutivas passou a ser a desapropriação. Mas esta via só começou a ser discutida seriamente nos anos 50-60. O governo formado logo após a Revolução de 30 promulgou uma série de decretos-lei proibindo o usucapião nas terras públicas e, ao mesmo tempo, encerrou a vigência da lei de 1850, transferindo a exclusividade da expedição de títulos de propriedade para a justiça comum. Mas a lei continuou a servir de modelo na falta de outro instrumento normatizador. A Constituição de 1934 previu a possibilidade do usucapião mas limitado a 10 ha. Durante o Estado Novo, Vargas favoreceu a implantação de projetos de colonização que visavam a disseminação da pequena propriedade, através da destinação de terras públicas na Amazônia e no Oeste para este fim. Foi a chamada "marcha para oeste" que tinha como objetivo manifesto a ocupação dos grandes espaços vazios do norte e do centro-oeste, ocupação que a ideologia oficial justificava como sendo necessária para dar continuidade ao processo de desbravamento do interior iniciado pelos bandeirantes e ao processo de integração econômica ainda débil. Na realidade, a região dos "espaços vazios" (o oeste) não se encontrava tão vazia assim. Estava ocupada por usinas de açúcar, plantações de mate, fazendas de gado, regiões de garimpo de ouro e diamante, exploração da borracha ou de drogas do sertão etc., o que reforça a idéia de que a ocupação de terras devolutas continuava a ocorrer ali desenfreadamente apesar dos inúmeros decretos reiteradamente proibindo o usucapião nas terras públicas (decretos de 1932, de 1938, de 1939 e de 1946). Nos anos 1950-60 a grande mobilização social em torno das reformas de base deu à discussão do latifúndio uma feição diferente. A reforma agrária, vista como um processo social amplo, parte fundamental das transformações estruturais que deveriam liquidar a dominação tradicional no campo, melhorar a distribuição de renda e dar novo impulso ao processo de industrialização através da ativação do mercado interno, dominou o cenário e polarizou as discussões sobre a questão agrária. A ênfase era dada ora na ampliação do mercado, ora na melhoria das condições de vida e de trabalho da população rural (na verdade faces da mesma moeda). A luta pela reforma agrária reuniu uma parcela importante dos trabalhadores rurais do Nordeste nas Ligas Camponesas e era parte do amplo processo de mobilização popular pela transformação democrática da sociedade brasileira. Do ponto de vista da legislação, a questão fundamental parecia ser a alteração da Constituição de 1946 no sentido de levantar o impedimento à desapropriação representado pelo artigo que previa a indenização prévia e em dinheiro dos proprietários atingidos pela reforma agrária. Apesar de toda a mobilização a favor das reformas, esta modificação constitucional não foi votada e o golpe de 1964 pôs fim à visão democrático-reformista da questão agrária. c) O Estatuto da terra. A partir dos governos militares, a atenção centrou-se novamente no destino a ser dado às terras devolutas, redirecionando-se a discussão tal qual ela começara no Império e fora ligeiramente relançada na época da "marcha para o Oeste" no governo Vargas, sem grandes conseqüências. Isto é, a visão da reforma agrária como parte das reformas de base foi abandonada em favor da elaboração de uma "política de terras" que desse um uso social às terras improdutivas. Este direcionamento aparecia de modo incompleto na Constituição de 46. De modo incompleto porque apesar de estipular no seu artigo 147 que o uso da propriedade estava condicionado ao bem-estar social e, no artigo 141, parágrafo 16, que devia-se promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos, estipulava a indenização prévia e em dinheiro das terras desapropriadas, o que paralisava todo o processo. O primeiro governo militar pós-64 contornou o problema através da Emenda Constitucional nº10, de 9/11/64, que substituía o parágrafo mencionado pelo "pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de 20 anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Imposto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas." Ao mesmo tempo, levou para a competência da União a delimitação das zonas prioritárias para a incidência da reforma, fixadas por decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais caracterizadas como latifúndio, conforme o definido na lei. O passo seguinte foi dado pela promulgação ao do Estatuto da terra. (lei nº4504 de 30/11/64). A elaboração e adoção de uma legislação agrária do alcance do Estatuto da terra pelo governo oriundo do golpe militar de 1964 só pode ser claramente compreendida se for vista como resultado da pressão internacional norte-americana. Obedecia aos princípios estabelecidos na Carta de Punta del Este de 1961, que fundava uma nova diretriz para a política fundiária da América Latina estimulada e apoiada pelos Estados Unidos. A mudança da posição americana vinha ocorrendo desde o final da década de 1950 e tinha por objetivo afastar o perigo de revoluções camponesas como a cubana do Continente latino-americano. Nesta mudança de orientação estava implícita uma ameaça de subordinação de toda ajuda financeira norte-americana à adoção de programas de reforma agrária. Naturalmente também estava implícita a necessidade de desbaratar os movimentos camponeses organizados, o que foi feito com muito sucesso em todo o Continente, nos anos 60. Assim, o reconhecimento da necessidade de reformar a estrutura agrária brasileira pelos militares brasileiros precisou ser precedida do afastamento dos principais interessados do processo. Além de definir regionalmente o latifúndio e o minifúndio, o Estatuto da terra definiu dois tipos de instrumentos para a realização da reforma agrária: um curativo e outro preventivo. O instrumento curativo deveria eliminar o latifúndio improdutivo através da desapropriação por interesse social e facilitar o acesso à terra dos pequenos proprietários, que o IBRA (organismo criado para esse fim) deveria assentar nessas terras. O instrumento preventivo era a tributação progressiva que funcionaria para impedir a reaglutinação dos latifúndios divididos pela desapropriação. O imposto territorial rural seria estabelecido pelos Estados, destinando-se 80% da sua arrecadação aos municípios. Os recursos serviriam para financiar os programas de reforma ou desenvolvimento agrário que contariam com receitas de outras origens (principalmente uma cota de 3% da receita anual da União). Nesta época, as diretrizes da reforma agrária estiveram sempre associadas à preocupação dos governos militares com a integração da Amazônia através da ocupação econômica e social dessa região praticamente determinou todas as suas iniciativas. Houve uma clara subordinação dos objetivos sociais da reforma aos objetivos estratégicos. A criação e extinção dos organismos destinados pelo Executivo a implementar a política fundiária - INIC, SUPRA, INDA, IBRA, GERA, INCRA, etc, produziu uma coleção de fracassos. d) A Constituição de 1988 e os desdobramentos atuais. O princípio da função social da propriedade rural do Estatuto de Terra foi levado para a Constituição de 1988 (artigos 184 e 186). Mas minuciosa e detalhista, ela na verdade veio a constituir mais um bloqueio ao processo de reforma agrária que já vinha se arrastando. Absorvendo dispositivos inteiros da lei ordinária que já vigorava, até mesmo os de natureza processual, sua aplicação ficou dependendo de regulamentação por lei complementar. Pelo Estatuto da terra, o poder público desapropriava, garantia a posse e a única coisa que se reclamava, depois, era o justo preço da indenização, pela Constituição de 88 o expropriado podia questionar o ato até mesmo do Presidente da República. A demora na regulamentação e as imperfeições contidas na lei definidora do rito sumário estancaram os assentamentos que já eram lentos. Ao vazio legal imposto pela nova Constituição vieram se somar os efeitos da crise econômica, ocasionando o aumento da tensão no campo brasileiro. Outro aspecto de grande relevância a ser definido pela nova lei era o relativo ao conceito de propriedade produtiva (esta é a que cumpre a sua função social e, como tal, é, junto com as pequenas e médias propriedades, insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária). Trata-se de um conceito polêmico e até hoje pouco claro, embora uma lei de 1993 (n°8.629 de 25/2) tenha definido a produtividade dos imóveis rurais. No artigo 6° são classificados produtivos os imóveis que tenham grau de utilização da área aproveitável igual ou superior a 80% e grau de eficiência na exploração da terra superior a 100%. Os índices de eficiência nas atividades agropecuárias são estabelecidos pelo governo. As áreas consideradas produtivas pagam menos ITR que as improdutivas. Mas sempre sobram formas de escapulir da definição legal. Depois de tantos anos de legislação elaborada inclusive com a intenção de combater o latifúndio improdutivo qual é a situação atual das terras brasileiras? Atualmente, segundo o MST, existem 140 milhões de hectares de terras improdutivas. O Brasil ocupa o segundo lugar em concentração da propriedade fundiária e o primeiro em desigualdade de renda no mundo. O perfil da concentração fundiária consta do Atlas Fundiário Brasileiro. Segundo o Atlas, as grandes propriedades (com mais de 1000ha) somam 42 mil imóveis que detém juntos 165,7 milhões de ha.(sete vezes a área do estado de São Paulo). 75 mil imóveis possuem mais de 100 mil ha. e juntos açambarcam 24 milhões de ha. ( onze vezes o estado de Sergipe). O Atlas diz ainda que a concentração de terras no país permaneceu quase imutável por 56 anos. O dado se baseia em levantamentos feitos em 1940, 1966, 1978 e 1992. Recentemente o governo editou uma Medida Provisória reformulando o imposto territorial rural (ITR). Eleva de 4,5% para 20% o imposto sobre as terras improdutivas (áreas superiores a 5000ha., com grau de aproveitamento de 20% ou inferior). Também estipula que o preço declarado pelo proprietário servirá de base para o cálculo do ITR e da indenização. Alguns analistas vêm aí o primeiro passo da reforma agrária. Mas basta percorrer a história do ITR para ficar totalmente desanimado com a capacidade do governo transformá-lo num instrumento de tributação progressiva e menos ainda de reforma agruparia. O Estatuto da terra previa a utilização do imposto como meio de impedir o ressurgimento do latifúndio improdutivo mas não ousou elevá-lo à condição de meio privilegiado na transformação da estrutura agrária no presente. A idéia de que o imposto é o meio privilegiado para as mudanças de que o campo carece é tão antiga quanto a lei de terras e neste particular tão ineficiente quanto ela. Ao longo do século XIX não foi possível implementar nenhuma espécie de imposto territorial, apesar da necessidade do financiamento da imigração (reivindicada pelos fazendeiros) e da escassez de recursos do Estado que contava basicamente apenas com dois tipos de impostos, o de importação e o de exportação. (Em comparação, durante o século XIX, o imposto sobre a terra foi a principal fonte de recursos do Estado americano - constituía 80% da receita municipal, a esfera estatal que maior participação detinha da arrecadação nacional). Na Primeira República a previsão da criação do ITR na Constituinte de 91 tornou-se praticamente letra morta pois sua arrecadação foi deixada a cargo dos estados e foi tão ignorada quanto as terras devolutas deixadas sob seu domínio. A partir da reforma fiscal de 1966 o ITR passou para a União e deveria financiar os diversos projetos de Reforma Agrária que desde a adoção do Estatuto da terra estão também em pauta com muito pouco sucesso. Além disso, a sonegação do ITR pelos grandes proprietários é fato conhecido e comum em toda a América latina. A incapacidade persistente do Estado brasileiro de transformar o imposto territorial rural numa fonte importante de recursos, e não pela falta de uma legislação pertinente, demonstra o quanto os interesses dos proprietários de latifúndios improdutivos sempre estiveram presentes no Estado. A legislação sobre reforma agrária é extensa. Extensa demais. A lei procura contemplar todos os caso possíveis e prever todas as possibilidades. Parece que há a intenção deliberada de, pelo detalhismo, emperrar o processo. Nenhuma iniciativa é deixada para os organismos encarregados da aplicação. Por outro lado, neste longo período histórico ao qual as diversas leis se aplicaram, o fator constante é a ausência da participação dos principais interessados. Sempre foram alijados do processo, forçados a isso pela repressão política ostensiva ou velada. O movimento dos trabalhadores sem-terra (MST) neste aspecto é uma novidade. Pela primeira vez os interessados diretos são os personagens principais da história. E cresce o consenso de que a reforma agrária é uma necessidade para o trabalhador tanto do campo como da cidade. Sintoma deste fato é que os prefeitos costumam apoiar as ocupações de terras efetuadas pelo MST nas suas regiões. Os séculos de história de legislação agrária ensinam que a democratização do acesso à terra não se fará sem a pressão e a colaboração dos principais interessados.
Boletim da ABA # 27
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