Darcy Ribeiro (1922-1997)

 

Com a morte de Darcy Ribeiro o Brasil perdeu um de seus filhos mais ilustres. Muito já se escreveu sobre ele e muito ainda será escrito. Mas é necessário lembrar que seu desaparecimento enluta também a cultura universal e especialmente o pensamento latino-americano. Darcy foi, sem dúvida, um dos grandes intelectuais brasileiros cujo pensamento transpôs as fronteiras de seu país e marcou de maneira indelével a formação de várias gerações de jovens do Brasil e da América Latina de modo geral. Darcy contribuiu também, e de forma decisiva, para que o pensamento latino-americano tivesse um lugar na cultura mundial. Além do antropólogo reconhecido internacionalmente, do político atuante, do homem de letras, do educador incansável, ou, exatamente pela versatilidade de que todos esses Darcys dão conta, é que ele contribuiu a definir um pensamento crítico no Brasil e em América Latina através de um diálogo com os latinoamericanistas dos demais países e regiões do mundo contemporâneo. Foi justamente num desses conclaves acadêmicos latino-americanos que o conheci há 27 anos. No 39° Congresso Internacional de Americanistas realizado no ano de 1970, em Lima, Peru. Nessas jornadas, nunca vou esquecer que Darcy manteve durante horas um debate sensacional com André Gunter Frank. Eram anos difíceis para América Latina (sempre são anos difíceis para nossos países): a recém ocorrida morte do médico argentino Ernesto "Che" Guevara, e o conseqüente descrédito da estratégia do foco guerrilheiro, levou os setores radicais das vanguardas latino-americanas a um processo de autocrítica e a repensar suas formas de atuação. Darcy estava no centro do debate defendendo o acesso ao socialismo, mas por meios pacíficos. Lembremos que alguns meses antes o Chile escolhia Salvador Allende como presidente através do sufrágio universal... Darcy seria seu assessor.

Em 1978, ele retornará definitivamente ao Brasil e ainda que mantendo seus contatos com o restante da América Latina, se consagrará com mais energia a seu Brasil. Os quase 14 anos de exílio pelas diferentes regiões da América Latina ficam para atrás, mas sua presença no sub-continente continuou mais forte do que nunca. Fora do Brasil, Darcy foi e é lido e estudado nos cursos de antropologia (e de Ciências Sociais) dos restantes países latino-americanos e a lição mais clara para todos esses leitores me parece ser a possibilidade de termos (ou a necessidade de formular) um pensamento independente, autônomo, genuinamente latino-americano. Um pensamento que seja o resultado de nossas reflexões sobre nossas próprias realidades sem, porém, ignorar o pensamento vindo de alhures. Darcy mesmo foi um estudioso e um leitor inteligente de autores clássicos da Antropologia como Leslie White e Julian Stewards, os chamados neo-evolucionistas que, por sua vez, tinham se inspirado nos evolucionistas verdadeiros -- como L. Morgan -- e nos textos dos fundadores do marxismo. Claro que falar em marxismo parecerá a muitos senão à maioria dos membros da antropologia acadêmica, algo verdadeiramente démodée...

Darcy nos ensinou, entre muitas outras coisas, a ver os índios latino-americanos como algo mais do que um simples (ou complexo) sistema de parentesco. Ele não conseguia desvincular a realidade sócio-econômica do "seu objeto de estudo". Foi por essa mesma razão que ele se distanciou da etnologia para virar um antropólogo-educador de massas: índios, ele dizia, são poucos enquanto que analfabetos e despreparados constituem a maioria de nossos povos. Não vale a pena julgar esse posicionamento. O certo é que, já novamente na vida política, primeiro como Vice-governador do Estado de Rio de Janeiro e mais tarde como Senador da República, ele continuará preocupado com a sorte da parcela menos favorecida do Brasil: os pobres - urbanos, caboclos ou índios. Idealizou os CIEPs, criou o sambódromo, mistura de carnaval com educação e, ultimamente, enquanto lutava com coragem ímpar contra sua doença, estava inteiramente consagrado à implementação do Projeto Caboclo: um modelo de produção alternativo organizado em cooperativas para ser implantado na Amazônia. Aliás, ele vem a falecer justamente no dia que estava se realizando o "Primeiro Simpósio da Amazônia", organizado por ele mesmo.

Mas não só foi homem de ação. De seus livros, "Os Índios e a civilização: A integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno" possui, como afirma Roberto Cardoso de Oliveira no seu artigo publicado recentemente na Folha de São Paulo (18.02.97), um "indubitável pionerismo no trato das questões de interação entre índios e não índios" e poderíamos acrescentar que "As Américas e a Civilização" teria que ser um texto de leitura recomendada para todos nossos alunos de graduação e até de pós. Se trata de um texto que mesmo que hoje possa ser considerado como desatualizado possui uma grande virtude: coloca o Brasil sob um olhar comparativo dentro do contexto latino-americano e mostra, simultaneamente, suas similitudes e suas diferenças com relação aos demais países da região. Por todas estas razões que proponho que nossa Associação, que hoje já sente saudades do Darcy, se mobilize para que o Memorial da América Latina em São Paulo, que ele mesmo também ajudou a criar, seja batizado com o nome de Darcy Ribeiro. Seria uma forma de perpetuar e de reconhecer que o luto, como disse no início, é simultaneamente brasileiro e latino-americano.

Guillermo Ruben / Unicamp

 

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Boletim da ABA # 27