O
senhor é um homem com muitas facetas: foi antropólogo,
educador, romancista, político. Que tal comerçarmos
esta conversa falando sobre esses vários papéis que
o sr. vem desempenhando em sua vida e tendo como ponto de partida
a criação do Museu do Índio, que sediou o primeiro
curso de especialização em antropologia no Brasil?
Olha, uma das decisões importantes, sábias, da minha
vida, foi a de me dedicar à etnologia indígena. E eu
devo isto ao ambiente da academia de São Paulo, da Escola de
Sociologia e Política, dos anos da guerra até 1946.
Estavam em São Paulo gente como Radcliffe-Brown, Emílio
Willems e Herbert Baldus, sobretudo, que formou a mim e a Florestan.
Havia, assim, em São Paulo, um ambiente que conseguiu fazer
esta coisa incrível: levar um rapazinho que veio de Minas Gerais,
filho de gente que criava gado, que o normal para eles seria colocar
um chapéu de couro e criar gado, a aceitar, como ideal científico
da vida dele, ir estudar a natureza humana lendo a natureza humana
nas populações indígenas. É quase inverossímel.
Mas eu podia ser muita coisa. Diziam sempre que eu era brightman,
que eu podia ser qualquer coisa. A opção pelos índios
parecia uma opção incrível, entretanto foi não
só vitalmente das mais belas, me deu os anos mais belos da
minha vida, como foi também intelectualmente, cientificamente,
muito importante.
Essas possibilidades me foram dadas por Rondon. Eu fui contratado,
nem havia nome para o meu contrato, porque etnólogo não
havia, nem sociológo, nem nada disso, nem antropólogo.
Me contrataram como naturalista, que era uma expressão genérica
que se usava para sábios alemães que caçavam
borboletas ou orquídeas. Começei a trabalhar na seção
de estudos do Conselho de Proteção aos Índios
e do Serviço de Proteção aos Índios. Aí,
depois de anos de pesquisa de campo, já na década de
50, eu me propus a converter o que era uma seção de
estudos, que fazia documentação cinematográfica,
em um Museu do Índio. Esse museu teve uma grande repercussão
internacional, porque pela primeira vez se fazia um museu especificamente
voltado contra o preconceito: ele era feito para mudar a idéia
que as pessoas tinham dos índios. Havia uma escadaria muito
ampla, que se subia, e se era obrigado, ao subir as escadas, a olhar
uma parede que havia dentro. E eu enchi a parede de fotografias grandes,
belas, de índios sorrindo, índios beijando crianças.
Então, o visitante tinha um primeiro susto ao entrar: que o
índio era bonito, que o índio era terno, que o índio
era afetuoso, que era o contrário da idéia que ele tinha
de índio. Depois passava por vitrines mostrando arte plumária.
Havia, também, um arranjo muito bonito em que eu mostrava que
nós não domesticamos nenhuma planta e que os índios
domesticaram mais de quarenta plantas que eles usam em sua roças;
e mostrava a dificuldade para fazer uma roça com machado de
pedra, que não corta, que esmaga. Então, aquilo impressionava
muito as pessoas. Havia muito mais coisas no Museu. O bom é
que terminava com um filme de 40 minutos que eu tinha feito sobre
um dia de vida de uma tribo da floresta tropical: era sobre os índios
Kaapor, com quem eu trabalhei muito tempo. E isso tinha um efeito
muito grande. Eu podia ver este efeito porque uma das coisas que nós
fazíamos era tomar crianças de 11 anos na escola e pedir
que escrevessem um exercício:"o índio, o que é
o índio?". E depois de visitar o Museu, repetia o exercício:
"o que é o índio?". Então, nessa segunda
etapa, mudava completamente a visão, e eu podia ver como as
crianças estavam percebendo aquele Museu.
O Museu tinha, entretanto, mais ambições. Em certo momento
eu organizei ali o primeiro curso de formação de antropólogos,
o primeiro curso de pós-graduação em antropologia.
E formei ali muita gente. Ou seja, era um programa de um ano de estudos
no Museu e o principal professor era eu, mas outras pessoas foram
chamadas também para dar cursos ali: Eduardo Galvão
e outros como Oracy Nogueira. E o aluno, depois de um ano conosco
no Museu, fazia um ano de pesquisa de campo. Era uma coisa bem organizada
e esse curso foi apoiado pelo Ministério de Educação
e pode se manter durante algum tempo. Mas é essa a época
em que eu entro em conflito com o Serviço de Proteção
aos Índios, porque foi a época em que a minha mentalidade
mudou. De repente, para mim, não era mais importante o que
eu fazia até então: colecionamentos indígenas
como se fossem fósseis do espírito ou estudar arte indígena,
sem atenção para a vida do índio, pelo o destino
do índio. Então, passei a me interessar cada vez mais
pelo destino da população indígena, e a tomar
como uma temática da antropologia, o destino do índio
e o problema do índio. E isso me levou a um conflito cada vez
maior com o Serviço de Proteção aos Índios.
E eu acabei saindo de lá, porque o conflito era aberto. Eu
queria que o Serviço não tivesse a atitude burocrática
que tinha e tivesse uma compreensão mais profunda. Mas era
uma guerra também contra os antropólogos que queriam
ler no índio a natureza humana como eu queria, como eu fiz
também. Foi uma crise que eu tive no meu espírito e
também tive com o mundo quando eu mudei de atitude.
Resulta aí, que me aproximo do Anísio Teixeira que era
um grande educador, um homem que orientava o Ministério da
Educação, como educador. Nós tínhamos
muita antipatia um pelo outro e tínhamos muitos amigos comuns
também. Anísio sempre dizia que eu era uma pessoa meio
louca, que sendo muito competente como é que eu me dedicava
a 0,002% da população brasileira, no lugar de me dedicar
a toda a população brasileira. Era uma espécia
de brincadeira que ele fazia, mas o certo é que eu passei a
trabalhar com ele e rapidamente passei a ser o vice-diretor de um
grande instituto de estudos educacionais, e levei o curso para lá,
para o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, que passei a dirigir
no plano científico. Eu levei aquele curso de aperfeiçoamento
em antropologia e em ciências sociais e funcionou muitos anos
ali. Esse curso é que depois passou para o Museu Nacional,
com Roberto Cardoso, e que continuou funcionando e funciona até
hoje. Mas eu me lembro de que naquele período, de transição,
houve uma transição também nos meus interesses.
Aproximando-me da educação, com Anísio, eu passei
a me interessar por edução primária, a fazer
um programa de pesquisas, o maior que o Brasil teve, um programa de
trinta e tantas pesquisas antropológicas e sociológicas
em que eu tentava entender culturalmente e socialmente o Brasil, para
termos um discurso melhor sobre a educação no Brasil,
para saber como educar, como fazer o Brasil entrar na civilização
letrada. Foi um programa de pesquisa muito ambicioso em que eu chamei
os principais cientistas sociais brasileiros para cooperar neste programa,
estudando temas diferentes. Eram estudos tanto do Brasil provinciano,
quanto do Brasil urbano. Eu, inclusive, fiz 14 pesquisas em cidades
representativas de áreas brasileiras em que estudava a cidade
e o seu contexto rural. Essas pesquisas tiveram muito êxito
e foram publicados 14 livros. Logo veio a ditadura. Nessa época
eu já estava com a vida alterada, porque tinha sido chamado
a ser Ministro da Educação. Depois fui ser chefe da
casa civil, que é o segundo cargo do governo no Brasil: é
como ser primeiro ministro. Eu dirigia a campanha pelas reformas de
base, principalmente a reforma agrária, a reforma urbana, a
reforma contra o capital estrangeiro, e foi uma luta muito grande
em função da qual fui parar no exílio.
Agora vou a outro capítulo. Quando a gente fica velho tem que
falar um pouco de si mesmo, para os jovens saberem. E assim de improviso,
você se lembra de algumas coisas e se esquece de outras. É
bom, porque é uma seleção. Bom, derrubado o governo,
eu me vi no exílio. Nos primeiros meses no exílio eu
estava num desespero tal que o que eu fiz com o Brizola e com o grupo
dele foi imaginar alguma forma de retomar o poder, mas isso me ocupava
pouco tempo: enquanto ocupavam as 24 horas do dia pensando em fazer
alguma guerra, eu lia ciência e ficção. Eu li
tudo o que pude pegar sobre ciência e ficção,
li uma centena de livros, que era um modo de fugir da realidade que
estava ali. Então aquilo é que alimentava o meu espírito.
Mas depois de alguns meses, uns três meses, eu caí em
mim. Na primeira semana eu já fui contratado pela universidade
como professor de antropologia e depois comecei a fazer um programa
de reforma universitária. Aí eu voltei a manter uma
vida intelectual mais intensa porque eu me propus um velho problema
da minha vida: Por que o Brasil ainda não deu certo? Por que
outra vez a direita nos derruba? Por que não fomos capazes
de defender as reformas que estavam quase alcançadas? Por exemplo,
a reforma principal, que era dar um pedacinho de terra a dez milhões
de famílias brasileiras? Era uma coisa factível nesse
país imenso com essa quantidade enorme de terras. E quem dirigia
isso era o Presidente, que era, ele mesmo, um latifundiário,
mas compreedendo que, se milhões de famílias tivessem
terra para plantar o que comem, para se manter ali, seria uma forma
de fixá-las no campo e de que seus filhos tivessem educação.
Eu me pergunto: Por que fracassamos? E escrevi então um livro
sobre o Brasil. Um livro de quatrocentas páginas. Em um ano
eu escrevi esse livro que seria a síntese daquelas pesquisas
que eu tinha feito, das quais havia 14 livros escritos e muitos manuscritos
também. Mas depois, ainda que fosse síntese de estudos
originais, ao fim do livro, quando terminei, verifiquei que o livro
não dizia nada de novo. Dizia o que estava em outros livros
também, porque não havia uma teoria sobre o Brasil.
O Brasil, de fato, era inexplicável, porque as teorias existentes
não explicavam o Brasil. E eu vi que era necessário
fazer uma teoria. Então eu joguei de lado aquele meu livro,
para fazer uma teoria explicativa sobre o Brasil, que me permitisse
escrever um livro mais compreensivo.
Nessa época há uma crise no pensamento filosófico
mundial, e particularmente no marxismo. São publicados os borradores
do Marx, que é o Marx maduro, texto de 1845, e é incrível
que a teoria implícita sobre a formação da sociedade
ou da capitalismo era muito melhor que a do Engels, que tinha se inspirado
no livro de Lewis Morgan: "A Origem da Família da Propriedade
Privada e do Estado", que é uma má etnografia,
mas era um esforço de compreensão das sociedades como
coisas explicáveis e como capazes de evolução.
Engels se encantou com o livro do Morgan, e o Marx preferiu calar
as teorias dele. Mas, quase um século depois, as teorias do
Marx são publicadas e, de repente, o marxismo tinha duas teorias
sobre a origem das sociedades, e quem tem duas não tem nenhuma.
E a discussão estava reaberta. Isso teve um grande efeito sobre
mim que procurava uma teoria explicativa. Um antropólogo norte-americano
pode ficar contente com a explicação do passado dele
na Europa. Ele esteve na Europa romana e foi romanizado ou quase romanizado.
Um francês também pode entender as coisas assim, porque
o seu passado é um passado primitivo, depois escravista, depois
feudal. Aquele era o passado dele, mas não era o nosso passado!
Não era uma teoria aceitável, e as teorias do Marx sobre
a sucessão das sociedades eram muito mais inteligentes e muito
melhores do que a que havia. E eu fiquei encantado com as novas teorias
do Marx porque é como se eu tivesse levantado a pedra tumular
e dito outra coisa do que se dizia dele, por exemplo, sua compreensão
de que houve uma formação anterior ao escravismo e à
sociedade arcaica que era a formação de grandes estados
como o Egito, a Mesopotâmia, o México, o o Estado incaico.
Era a compreensão de um tipo de sociedade não escravista,
mas capaz de se organizar em bases diferentes, em geral, sociedades
hidráulicas, sociedades que faziam utilização
de águas e de irrigação e que permitiam grande
produção agrícola e portanto um excedente para
fazer grandes obras. Isso não aparece nem em Engels nem em
Morgan. Para Marx, havia outra sociedade anterior a escravista: os
judeus nunca foram escravos do Egito, senão nunca teriam saído
de lá. Eles saíram porque eram vassalos, estavam lá
ligados a tarefas e depois de cumprirem essas tarefas foram despedidos.
Isso é totalmente diferente da escravidão pessoal, que
há na Grécia, depois em Roma, em que se escraviza a
pessoa individualmente, a destribaliza, a desagarra de seu povo, e
faz dela um objeto que tende a ser totalmente transformado. E que
dá um tipo de sociedade diferente, em que a forma da família
muda porque a propriedade é individual, é familiar.
Então isso tudo era muito mais claro nos textos de Marx.
E eu, como o mundo inteiro, ficamos encantados com isso. Tentei, então,
fazer alguma coisa que nos tornasse explicáveis. É evidente
que mesmo as teorias do Marx eram inexplicáveis para a Península
Ibérica, como eram inexplicáveis também para
a situação árabe, porque estas não eram
sociedades feudais, não eram capitalistas, não eram
socialistas. Haviam mais formações do que se considerava,
e no caso específico da Península Ibérica, Marx
nunca entendeu como é que Portugal e Espanha são capazes
de, num certo momento, se expandir e criar um mundo só, fazendo
do universo inteiro um só mercado, fazer essa expansão
extraordinária.
Essa expansão podia ser obra do feudalismo? Jamais. O feudalismo
é uma sociedade talhada pela autoridadezinha local que só
se interessa pelo castelo, pelas imediações do castelo.
O capitalismo só surgiria quase um século depois, na
Inglaterra e na Holanda. Então, havia uma formação
ali que não era capitulável nas coisas que existiam
e que eu queria compreender, que seria algo parecido com a civilização
árabe. Então, eu escrevi o meu livro, "O Processo
Civilizatório" que é uma tentativa de compreender
dez mil anos da história humana, genericamente, de forma tal
que não só a Península Ibérica, não
só o mundo árabe, mas nós mesmos também
pudéssemos ser compreensíveis.
Era mais legítimo que um brasileiro fizesse isso, ou um latinoamericano,
que qualquer outro, porque nós tínhamos conhecido sociedades
tribais arcaicas, sociedades coloniais, nós tínhamos
vivido tipos de sociedade diferentes. Nós tínhamos uma
massa de informação maior do que qualquer teórico
europeu ou qualquer filósofo de outro lugar. E então,
realmente, eu aceitei a ousadia de escrever uma teoria da história,
baseado na idéia de que, com base no desenvolvimento da tecnologia,
se podia fazer uma seriação da sociedade, melhor do
que as seriações que existiam. Fui muito ajudado nisso
pelos arqueólogos, graças à Betty Meggers, que
é uma arqueóloga muito amiga minha a vida inteira. Eles
me ajudaram a estabelecer pautas das tecnologias e a correlacionar
as tecnologias diferentes e a mudança das tecnologias com a
mudança das civilizações.
Como
foi a repercussão da publicação deste livro?
Teve muita repercussão. Eu me lembro bem que quando mandei
o livro para ser publicado aqui no Brasil, um intelectual conhecido
meu dizia: "O Darcy é maníaco, quem é ele
para escrever uma teoria da história?" Quer dizer, é
esse complexo de inferioridade do brasileiro que o leva a pensar que
ele é incapaz de fazer uma teoria da história. Então,
ele escreveu uma carta sobre isso e o editor me mandou. Aí
eu mandei para ele a edição norte-americana, para mostrar
que a editora mais importante do mundo em antropologia que é
a Smithsonian, de Washington, publicou meu livro. Eu disse para meu
editor: "Não seja besta! Você não publica
porque é imbecil! E eu proponho que você publique o meu
livro e a carta desse idiota lá também. Porque você
pode publicar o meu livro como tradução da edição
norte-americana". Depois dessa edição saiu uma
outra na Alemanha, onde o livro foi muito discutido.
É um livro latinoamericano, brasileiro, escrito no Uruguai,
com muita ajuda de antropólogos e arqueólogos de fora,
que teve um grau de discussão internacional muito grande. Há
uma revista antropológica muito importante, que é Current
Anthropology, que uma das coisas que faz é entregar a uns dez
antropólogos um livro ou um artigo importante para que eles
leiam e façam apreciações, e o meu livro foi
objeto de apreciação internacional.
Esse livro "O Proceso Civilizatório", afinal saiu
em uma edição brasileira também e tem uma dezena
de edições nas línguas principais. Mas o tipo
de explicação que eu alcançava no Processo Civilatório
era muito genérico porque eu tinha que explicar dez mil anos
em poucas palavras. Todas as teorias francesas da história
são muito genéricas, e eu sentia necessidade de alguma
coisa mais concreta.
O que o senhor fez então?
Eu parti para escrever uma outra coisa, que era um livro que, em vez
de alto alcance histórico, tinha médio alcance. Eu o
chamei de "As Américas e a Civilização".
Neste livro, eu examinei quinhentos anos da história americana
para explicar as causas de seu desenvolvimento desigual: por que o
Brasil, que era e fora muito mais rico, muito mais ilustrado do que
os Estados Unidos, ficou para trás? Os Estados Unidos eram
o próprio atraso. Nunca tiveram cidades como Salvador, Recife,
Rio ou muito menos como Ouro Preto, nunca tiveram nada de civilização.
E nós tínhamos muito mais e tínhamos muito mais
riqueza também. O Haiti também, que era a pérola
da França, que tinha uma gente paupérrima. A França
vivia do Haiti e a América do Norte vivia de vender comida
e artefatos para o Haiti, mas aquela gente paupérrima progrediu
formidavelmente e se organizou como civilização. E nós,
que éramos muito mais ricos, e no caso do Brasil, muito mais
ilustres, caímos no atraso, por que, quais as causas do desenvolvimento
desigual? Neste livro eaço uma tipologia dos povos americanos,
em que mostro que os povos americanos podiam ser classificados numa
categoria de "povos testemunho", que eram povos que viviam
o drama de ser dois. Este é o caso dos povos do altiplano andino,
México e Guatemala, em que a civilização moderna
e européia, chega lá e se implanta, mas a gente de lá
continua carregando no peito uma outra alta civilização
e outros altos valores. Eles são o que eu chamo de "povos
testemunho", porque guardam em si a memória viva das altas
civilizações que eles foram.
Outra coisa são os "povos transplantados". Povo tansplantado
é gente européia que vai para o espaço do além
mar, tira os índios, limpa o terreno e ali faz uma sub-Europa.
É o caso do progresso da Austrália em relação
ao Brasil. Ora, não tem novidade nenhuma fazer uma Austrália:
é uma bobagem! Você pega um pocadinho de irlandeses,
escoceses, italianos e joga lá e eles fazem uma Inglaterra
de segunda e aquilo ali funciona muito bem. É totalmente diferente
do que pegar massas de índios, de negros, de europeus e construir
um gênero humano novo, construir uma civilização.
Então, nesse livro eu apresento as categorias de "povo
testemunho", de "povo transplantado", e de "povo
novo", que é povo que surge como gênero humano novo.
É o caso específico do Brasil, da Venezuela e da maior
parte dos países da América Latina, em que a população
foi desindianizada. Desafricanizaram o negro, que aqui posto foi refeito,
e deseropeizaram o europeu. Então esse "povo novo"
não está pregado em passado nenhum, nem está
reproduzindo civilização estranha nenhuma: ele é
um gênero novo, é uma coisa nova, uma gente que se vê
de repente, que é o chamado mameluco, que não é
índio, porque não se identifica com a mãe que
o pariu, e cuja cultura ele comeu, não é aceito pelo
pai como igual também, é um mulato, não é
africano, evidentemente, e também não é indígena,
e não é europeu. Essa gente que não é
ninguém e que se constrói, a si mesma, como uma outra
entidade é um gênero humano novo, alguma coisa nova no
mundo.
E esse livro, calcado num escopo de tempo menor e voltado
a entender a gênese de um continente, o satisfez?
Não. Eu ainda não estava satisfeito porque, no fundo,
não havia teorias explicativas aceitáveis para coisas
tão importantes como uma tipologia das classes sociais, não
havia tipologia das formas de ação política também,
não havia um estudo adequado das forças insurgentes,
das esquerdas, ou das forças capazes de uma revolução.
E não havia uma teoria adequada também da cultura, da
nossa cultura, feita de retalhos, tomada de tantas matrizes diferentes,
mas fundida e que chegou a ser uma coisa original e própria
. Então eu escrevi um livro de verdade sobre a América
Latina, em que eu proponho uma tipologia das classes sociais, que
não foi essa bobagem de estar repetindo a conversa marxista
de proletariado, aristocracia e burguesia que eu não vi aqui.
Esse livro é "O Dilema da América Latina".
Tendo escrito esses livros, escrevi mais um que é "Os
Índios e a Civilização", que eu vinha fazendo
há anos, por encomenda da Unesco. Este livro me ensinou muito
porque me fez desenvolver um conceito de "transfiguração
étnica", que é o processo pelo qual os povos se
fazem e se transformam ou se desfazem. Nenhum índio vira civilizado,
o que há é que um povo indígena, mantendo sua
indianidade, vai morrendo e, ao lado dele, surge um núcleo
humano que cresce à custa dele e que cresce contra ele, que
é o núcleo civilizado. Então, assim como não
há conversão, não há assimilação.
O que há é uma integração inevitável.
Se o índio é cada vez mais cercado de um contexto civilizado
ou comercializado, se ele próprio se converte em mão
de obra, se ele próprio tem que produzir mercadoria, é
claro que ele tem uma integração cada vez maior com
a sociedade nacional. Mas esta integração não
quebra nele a identidade, que é como a do judeu, como a do
cigano. Ele mantém a sua identidade como indígena. Apesar
de transformados os costumes, apesar de mudar o modo de se vestir.
Apesar de todas essas mudanças, ele permanece indígena.
Então, eu chamei a isto, teoricamente, processo de transfiguração
étnica. A transfiguração étnica se faz
através de instâncias, que não precisam ser uma
depois da outra. São instâncias nas quais um povo se
transforma e se transforma tanto mais, necessariamente, porque é
transformando-se que ele sobrevive. E ele se transforma mantendo sua
própria cara, mas mudando para tornar viável sua vida
num contexto que lhe é hostil.
Num primeiro momento, ocorre um tipo de interação biótica,
quando chegam os brancos trazendo suas pestes. O mundo antigo, Europa,
Ásia, África, estava integrado e as suas pestes passavam
entre eles. Um povo que não sofreu as pestes, como os povos
americanos, morria pela metade quando chegava o europeu com suas doenças.
Quando, então, chegava a segunda doença, ela matava
a outra metade. Ainda hoje, as tribos que estão entrando em
contato com a civilização sofrem também o mesmo
processo. É um processo de interação biótica
em que duas populações, bioticamente diferentes, se
encontram e a coesistência entre elas provoca este desastre.
No caso do Peru, por exemplo, a população caiu incrivelmente,
muito menos em decorrência da guerra e da escravidão
que também matam muito, mas em função deste tipo
de interação biótica. A relação
é de 1 por 25: onde existiam 25 pessoas, depois de um século,
você tem uma pessoa.
Assim, a transfiguração étnica se dá,
primeiro, por uma interação que é biótica
e depois por uma interação ecológica. Se você
coloca vacas, cabras e porcos, onde os índios estavam, onde
eles faziam suas roças, esses animais tomam o lugar deles e
provocam enorme mortalidade. É claro que se considera uma vantagem
que os europeus tenham trazido animais domésticos, mas esses
animais representam uma invasão no ambiente e impõem
uma nova condição ecológica, fazendo com que
as populações diminuam enormemente. É importante
entender isto porque o mundo moderno, vamos chamar o terceiro mundo
ou o quarto mundo, cheio de miséria, de pobreza, é obra
do homem europeu. O bandido europeu, onde ele chegou, encontrou povos
tribais que eram ecologicamente equilibrados, produziam o que comer,
tinham uma grande alegria de viver. Esses povos foram ecologicamente
dizimados, na medida em que chegaram os europeus e passaram a usá-los
como mão-de-obra e modificaram totalmente o ambiente deles.
Depois da interação biótica e ecológica,
você tem a interação econômica, em que o
índio é tomado ele mesmo e escravizado ou ele tem que
entrar num circuito econômico, produzindo mercadoria. E depois
tem ainda toda a esfera terrível da interação
social, cultural, psicológica. Aí chega mais gente com
convicção de que o único deus é o seu,
de que o deus é branco, e mete isto na cabeça daquela
população que tinha outras concepções.
Todo o desprezo que o europeu tem pelos índios, se introjeta,
sobretudo nas crianças e nos jovens, que passam a ver a si
mesmos como um povo de segunda classe. O efeito deste processo de
transfiguração étnica é, nessas várias
instâncias, dizimador. Um povo vai desaparecer em qualquer destas
instâncias, ou na primeira ou na segunda, ou pelo conjunto delas,
ou pode sobreviver a elas.
Sobreviver a elas é se reinventar. Com essa compreensão
que eu tinha alcançado, eu começei a escrever este livro,
"Os Índios e a Civilização". É
um livro que apresentava uma teoria nova, importante. Esse livro me
custou muito trabalho para fazê-lo e eu custei muito a aceitá-lo.
Eu publiquei quase todo o livro em artigos, que tiveram muita repercussão,
por que foram publicados em muitas línguas. Mas só no
exílio é que eu terminei-o como parte desse conjunto:
O Processo Civilizatório, As Américas e a Civilização,
Os dilemas da América Latina e Os Índios e a Civilização,
em que eu examino em detalhes do que aconteceu com as populações
indígenas, com mais atenção sobre o século
XX, onde mostro que 80 povos desapareceram. Isso tudo me ajudava a
fazer uma teoria do humano e uma teoria explicativa da sociedade brasileira.
E como o senhor definiria seu novo livro "O Povo
Brasileiro"? Seria ele uma continuidade deste conjunto?
Olha, esse conjunto, que me levou mais de dez anos para ser escrito,
hoje tem 170 edições nas principais línguas É
o conjunto de uma obra teórica, de um brasileiro, latino-americano,
mais traduzido e mais discutido, porque está quase todo ele
em todas as línguas principais. Mas esse conjunto ainda não
me era satisfatório. Depois do exílio, quando eu vim
para cá, por volta de 1980, eu tornei a escrever uma terceira
versão completa de um outro livro, mas não estava satisfeito.
O tempo foi passando e eu acabei sendo hospitalizado, numa UTI. A
UTI me horrorizava, a UTI é uma câmara da morte. Eu passei
21 dias na UTI. É verdade que a UTI me salvou: eu estava com
dor, pneumonia, liquidado em função de um tratamento
de quimioteria para o meu segundo câncer. Mas a minha angústia
era enorme, parece até inverossímel, pois eu queria
viver e eu sabia que se eu ficasse na UTI eu iria morrer. Eu queria
viver e eu queria terminar esse livro. Você calcula, eu tinha
170 edições de 5 livros. Tinha que completar esse conjunto
com mais um livro. Então, para mim, era de uma importância
enorme. Eu fiz uma guerra tremenda e acabei obrigando a fazerem uma
UTIzinha, num apartamento, porque eu não aguentava ver aquela
gente morrendo ao lado. Mas eu queria fugir e eu ameaçava o
médico de que se ele não me deixasse sair, eu ia suicidar-me.
O médico ficava apavorado. Eu ficava dopado, quando eu saia
da dopagem eu xingava o médico, a mãe dele. Eu fazia
o diabo porque eu estava loucão para sair daquela casa da morte.Um
dia, eu estava ameaçando me suicidar se o médico não
me deixasse passar o ano novo em casa, em Copacabana. Ele deixou e,
quando eu me vi no carro, estava o meu sobrinho que é um homem
sério, que garantiu ao médico que ia me trazer no dia
seguinte. Quando chegou numa esquina, em que o carro ia virar para
Copacabana, eu disse: "Não vou para Copacabana, eu vou
para Maricá". Ai meu sobrinho disse não, e comecei
a discutir com ele, coloquei-o para fora do carro. Aí chamei
o Jairo, que é o marido da minha chefe de gabinete. Disse:
"senta aí Jairo e vamos para Maricá". E eles
que estão acostumados a receber as minhas ordens, a trabalhar
comigo, entraram no carro e tocaram para cá, para Maricá.
Eu consegui fugir do hospital. Então vim aqui para Maricá
e fiz uma completa loucura: no caminho, no último posto de
gasolina, tem um lugar que vende caldo de cana e eu gostava de caldo
de cana espremido com limão, que dá um tipo de bebida
que eu gosto. Eu estava a 21 dias sem comer, vivendo de soro, e eu
disse: "Traz um copaço de caldo de cana para mim".
E ele foi lá e trouxe. Eu bati aquele copaço, uma maravilha.
A minha barriga que não via nada a dias reclamou. Quando eu
cheguei aqui tive uma caganeira que foi um horror. Eu expelia bosta
por tudo que era lado (risos). Mas eu creio que isto me curou. Mandei
trazer para cá o computador e chamei outra secretária,
a Gisele, que é a minha assessora principal, peguei as versões
antigas do livro e fui ditando a versão final do "O Povo
Brasileiro". Eu o fiz aqui em um mês e tanto. É
claro que o livro estava todo na minha cabeça, só que
de uma forma insatisfatória e eu o refiz de uma forma que me
deixou satisfeito. Ficou bom, ficou o que eu queria. Esse livro foi
editado e em um mês saiu uma edição e oito re-impressões
e em dois meses vendeu 80 mil exemplares: é o primeiro livro
meu que tem um sucesso grande assim, mas o sucesso não é
tanto pelo livro, é porque o cara para escrevê-lo, estava
com câncer, câncer dá muito prestígio, fugiu
do UTI ... (risos). Então tudo isto teve um efeito bom porque
afinal eu consegui coroar a minha obra.
Desde 64 que eu estou trabalhando nessa série que eu chamo
"Estudos de Antropologia da Civilização" e
"O Povo Brasileiro" veio integrar-se a ela. Para mim seria
uma frustração tremenda se eu morresse sem escrevê-lo.
Agora, até que eu estou livre para morrer.
Nem tanto: os jornais noticiam que o sr. está escrevendo
um novo livro.
É verdade. Enquanto isso não acontece, estou fazendo
uma coisa que está me dando muito prazer. Eu fiz uma pesquisa
de dois anos nos anos 50 entre os índios Urubu-Kaapor, que
ficam no rio Gurupi, que é fronteira entre o Maranhão
e o Pará. É a segunda tribo à qual me dediquei
totalmente, porque eram os índios mais próximos dos
Tupinambá que viviam na costa em 1500. Mas, em 500 anos, a
língua deles mudou, os hábitos deles mudaram e eles
são outros, mas são outros muito próximos, os
mais próximos. Então se pode estudar os Tupinambá,
como o Florestan Fernandes estudou, por exemplo, com base na documentação
dos cronistas, de 1500 a 1600, que descreveram os Tupinambá.
Florestan fez uma obra extraordinária, seu livro "Organização
Social dos Tupinambá" foi feito como uma tese funcionalista
com base na documentação dos cronistas.
Eu me treinei para outra coisa: para ir ler na realidade. Então
fui procurar uma tribo, a mais próxima dos Tupinambá
para estudar o que eram as populações indígenas
brasileiras. Então fiz duas grandes expedições
entre esses índios. E em todas as minhas expedições,
eu sempre fazia diários. Tenho diários que estão
em umas 800 páginas datilografadas que são os diários
das duas grandes expedições que eu fiz em 49 e 50/51,
entre os índios Urubu Kaapor. Eu sempre pensei que ia ter tempo,
em algum momento, de me dedicar intelectualmente a esse material,
mas quando acabou isso começou a minha vida de ministro, de
ser político, de fazer a revolução brasileira,
de ir para o exílio, de fazer uma teoria do Brasil, uma teoria
do mundo. Mas a minha idéia, até há algum tempo
atrás, era a de que eu ia subsumir daquelas 800 páginas
de diário, a sua religião, a sua mitologia, a sua economia,
a sua arte, para publicar mais uma monografia. Mas de repente, caí
em mim, de que isso é uma loucura, uma bobagem, porque não
é verdade, não há uma ideologia sem uma religião,
sem uma economia, sem uma arte: está tudo misturado. Por isso
tudo, é muito mais verdadeiro o meu diário, então
eu tomei a decisão de refazer o diário, e estou terminando
agora.
Esse diário é uma espécie de convite: venha leitor,
venha andar comigo mil quilômetros, aldeia por aldeia, vamos
visitar cem aldeias, conhecer as pessoas que estão lá,
o que elas estão fazendo, se tem um batizado, como é
que batizam, se tem um casamento, como é que casam. Venha comigo
ver! Então na realidade, eu creio que vou dar um livro ao leitor,
mais legível, porque é um livro em que, dia-a-dia, eu
descrevo a minha vivência com os índios. O leitor tem
a possibilidade de me acompanhar e de ter uma aventura espiritual.
É claro que uma das coisas bonitas e estranhas é que
a metodologia é toda contraditória, uma hora eles me
contam uma coisa, outra vez me contam outra, e mais outra versão;
e se eu fosse fazer um livro na forma de uma monografia, eu ia subsumir
daquilo o que decidisse que era a verdade; e, para os índios
nada daquilo é verdade, porque tudo é verdade. Então
é muito mais verdadeira essa exposição larga,
ampla, do que eu vi em cada aldeia.
Quando eu escrevi o meu romance Maíra, que eu escrevi no Peru,
naquelas mil horas, ou naqueles mil dias em que eu estive escrevendo
Maíra, eu não estava exilado, porque Maíra me
devolvia a minha vida entre os índios. E agora muito mais com
esse diário eu me recupero. Tem aqueles retratos todos, daquela
época. São cem fotografias selecionadas que eu fico
olhando para elas, de duas mil, que eu tenho. Então, eu me
vejo com trinta anos, cheio de calor humano, convivendo com aquela
gente. E me dá um sentimento de estar revivendo aqueles dias.
Nunca escrevi uma coisa tão gratificante como esses diários.
Eu vou chamar o livro provavelmente de "Diários Índios".
E isso é o que eu estou fazendo agora.
Boletim
da ABA # 27
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