A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), junto com sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), manifesta sua indignação com os recentes acontecimentos envolvendo o povo indígena Pataxó, quando homens fortemente armados invadiram as aldeias Boca da Mata e Meio da Mata, no extremo sul da Bahia, numa ação promovida por fazendeiros e milicianos, criando uma situação de terror, especialmente para velhos, mulheres e crianças que se encontravam nas aldeias.
Há mais de vinte anos o povo Pataxó luta pela regularização da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, localizada nos municípios de Porto Seguro, Prado e Itamaraju, no extremo sul da Bahia, em um processo que já garantiu a esse povo o reconhecimento de áreas de ocupação tradicional importantes, que não haviam sido contempladas na demarcação ocorrida na década de 1980. No entanto, nos últimos anos, e sem o avanço do processo de regularização territorial, estacionado na declaração da posse indígena, os Pataxó têm vivenciado, ao invés do avanço de seu direito, situações limite de novas invasões de terra, arrendamentos, tráfico de drogas e incremento das milícias patrocinadas por fazendeiros, setores da política local e grupos poderosos ligados ao turismo e ao mercado imobiliário de terras.
Cansados da espera por um processo de regularização que pouco avançou, agravado pela situação lamentável de miséria que acomete o país, e por consequência os povos indígenas, o povo Pataxó da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, notadamente os das aldeias Cassiana e Boca da Mata, tentam desde junho de 2022, empreender ações de retomada de terras localizadas na área delimitada, mas ainda invadida por terceiros. Em todas as tentativas, três no total, a repressão foi imediata e violenta. Ainda em julho, um conglomerado de caminhonetes e carros dirigidos por fazendeiros e seus capangas invadiu e aterrorizou não apenas a área recém ocupada pelos Pataxó, Fazenda Brasília, como também a aldeia Cassiana. Antes da própria invasão, áudios e vídeos compartilhados em grupos de whatsapp anunciavam a invasão e colaboravam para o clima de medo e terror. Visando a defesa da integridade física de seu povo, líderes Pataxó recuaram da ação, contudo, a ameaça às aldeias persistiu. Assim, mais uma vez os Pataxó se reorganizaram para nova ocupação da mesma área, contudo, no último 17 de agosto, a situação ficou insustentável para o povo Pataxó. Homens fortemente armados invadiram as aldeias Boca da Mata e Meio da Mata patrocinando uma tarde de terror, especialmente para velhos, mulheres e crianças, que se encontravam nas aldeias naquela hora. No mesmo momento, áudios e vídeos de professoras e lideranças davam conta da invasão e dos terríveis acontecimentos: crianças presas na escola tentavam se proteger das balas que atravessavam portas e paredes. Uma situação que remeteu imediatamente o povo Pataxó ao episódio que marca tragicamente sua história: o “Fogo de 1951”, quando a aldeia-mãe, Barra Velha, foi invadida e incendiada, promovendo a maior dispersão vivenciada pelo povo. Notas divulgadas pelo Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoíba) e por lideranças do próprio povo Pataxó têm denunciado a presença de policiais militares que, à paisana, trabalham como seguranças particulares de fazendeiros e participam ativamente das ações das invasões às aldeias. Muitas gestões estão sendo feitas junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia solicitando investigações para essas denúncias. As mesmas notas denunciam o descaso ou falta de estrutura da Funai para apoiar os Pataxó ou para cumprir seu papel de proteger as terras indígenas.
Além dessas violências, os Pataxó tem sido vítimas de interditos proibitórios judiciais que impedem a circulação entre as aldeias e o deslocamento às cidades da região. Desse modo são tolhidos de um direito constitucional fundamental, causando prejuízos ao cotidiano das famílias e aumentando a sensação de medo, insegurança e terror.
O povo Pataxó é o mais numeroso do Estado da Bahia e sua ocupação na região do extremo sul data desde o século XVII, quando foram registrados pela primeira vez por viajantes e cronistas, garantido o pouco que resta de mata atlântica e biodiversidade na região. Esquecidos pelo órgão indigenista, foi na implantação do Parque Nacional do Monte Pascoal, ainda na década de 1960, que os Pataxó viram mais uma vez seu modo de vida ameaçado e sua terra esbulhada. Apenas na década de 1980, uma demarcação insuficiente, de cerca de 8.000 hectares, garantiu principalmente a aldeia mãe, Barra Velha. Mobilizados e apoiados pelo movimento indígena e indigenista, no final dos anos 1990, os Pataxó conseguiram que a Fundação Nacional do Índio (Funai) abrisse o processo de estudo da terra indígena e mantiveram um vigoroso processo de andanças pelo território tradicional e de trocas diversas entre os parentes espalhados pelas diversas aldeias, inclusive com uma tentativa, ainda em 2014, de retomada da mesma área em questão hoje. Quanto ao andamento do processo de regularização territorial, foram respondidas todas as contestações sobre a demarcação e, em 2018, foram suspensos pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) mandados de segurança e interditos proibitórios, que tentavam impedir o avanço do processo. Em 2020, juntamente com outros tantos processos cuja portaria declaratória já deveria ter sido assinada, o processo da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal foi devolvido à Funai pelo então Ministro da Justiça, Sergio Moro. Desde então, e com esse precedente inconstitucional, a violência e o medo têm acompanhado e ameaçado a existência do povo Pataxó.
Dado a gravidade da situação, a ABA e a CAI manifestam a sua profunda preocupação com a situação de violência cotidianamente vivenciada pelos Pataxó e reivindica aos órgãos competentes a apuração das denúncias realizadas pelo movimento indígena, bem como a restituição dos direitos territoriais do Povo Pataxó:
- a) A Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia deve apurar a participação de policiais militares à paisana na repressão aos indígenas, que estariam atuando como seguranças privados dos fazendeiros. Devendo a Polícia Militar garantir a integridade física das comunidades Pataxó.
- b) O Ministério Público Federal (MPF) e a Procuradoria Geral da República (PGR) devem acompanhar e recorrer das ações de reintegração de posse movidas contra os Pataxó, bem como atuar contra os interditos proibitórios, que tem impedido a circulação dos indígenas, ferindo o seu direito constitucional fundamental de ir e vir.
- c) A Funai deve atuar juntamente com a Advocacia Geral da União (AGU) na proteção dos direitos territoriais e constitucionais dos Pataxó, acionando a Polícia Federal (PF) para investigar as violências cometidas contra as comunidades indígenas e atuar na sua proteção.
Brasília, 26 de agosto de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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