A Associação Brasileira de Antropologia, por meio do seu Comitê de Gênero e Sexualidade, manifesta repúdio às nefastas posturas defendidas recentemente por autoridades religiosas e políticas brasileiras diante do estarrecedor caso da menina de dez anos grávida em decorrência de estupro cometido por seu tio, que a violentava impunemente há quatro anos. Ademais, a ABA declara seu apoio à vida e aos direitos das meninas, em especial, das meninas negras, que são as principais vítimas desse tipo de sobreposição de violências e da maternidade compulsória.
Nos últimos dias o país viu os jornais estamparem o caso desta menina e constatou que o direito à interrupção da gravidez nos casos previstos por lei nem sempre é respeitado e realizado de modo sigiloso, como deveria ser. O caso contempla duas hipóteses de autorização legal para interrupção da gravidez, previstas pelo Código Penal desde 1940: a da gravidez ser resultado de estupro e a de haver risco de vida para a gestante, no caso, uma criança que não poderia levar a termo uma gestação. Por estes dois aspectos, o caso enquadra-se na previsão legal do direito à interrupção da gravidez de modo seguro pelo Sistema Único de Saúde. Mas este direito lhe foi negado, quando ela não teve acesso ao atendimento legalmente previsto e judicialmente autorizado no estado do Espírito Santo, tendo que viajar para Pernambuco para realizar o procedimento.
Não fosse o bastante, uma série de outros constrangimentos completam a sucessão de violências e violações de direito sofridos pela menina, quando pessoas que se declaram religiosas, médicos e parlamentares assediaram a criança e sua avó (responsável por ela) a fim de impedir o aborto e condenar qualquer permissivo para sua prática. A imprensa noticiou ainda que a ministra Damares Alves afirmou que “gostaria de ajudar” a menina, buscando convencê-la a manter a gravidez indesejada e de risco, resultante de estupro de vulnerável. Até o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira de Azevedo, lamentou a morte do feto de cinco meses, afirmando acreditar, mesmo sem ser médico, que a ciência teria recursos para preservar a vida das duas “crianças”.
Essas autoridades e manifestantes não levaram em conta o sofrimento da vítima e de seus familiares diante de uma gestação resultante de abuso sexual infantil e o grave risco que ela corria de morrer durante a gravidez ou no parto por possuir um corpo ainda imaturo, como declararam vários médicos. As manifestações em prol da manutenção da gravidez não levaram em conta a defesa da vida da menina, essa sim um ser social e um sujeito jurídico pleno, com direitos estabelecidos em lei. Ainda mais chocante foi a atitude de conhecida militante de extrema direita que violou os direitos da criança, ao atacar a vítima, divulgando seu nome e o do hospital em que o procedimento se realizaria, como se ela fosse culpada pela violência que sofreu. Tal atitude deixou a criança ainda mais vulnerável a ataques e ao estigma, sendo que ela tinha legalmente o direito ao sigilo.
Causa horror saber que foram estimuladas manifestações na frente ao hospital em que a criança foi atendida em Recife, chamando a menina e a equipe de “assassinas”. Causa espanto que a ira não tenha sido destinada ao crime, mas à vítima e àqueles que a assistiram. Por outro lado, felizmente tem crescido nos meios de comunicação e na sociedade uma série de reações críticas a esses ataques. Particularmente importante mencionar que prontamente se constituiu em torno de caso uma rede de proteção formada por uma equipe técnica e grupos feministas, que garantiram o deslocamento seguro da menina capixaba até o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam) no qual o procedimento foi realizado. Ativistas do movimento de mulheres de Recife organizaram também no mesmo local um manifesto contrário aos ataques ultraconservadores e em favor do aborto legal.
O Brasil tem muitos casos de violência sexual de crianças e adolescentes. O crime é definido no Código Penal como “estupro de vulnerável” e caracterizado como sendo o ato de manter conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos ou alguém que por enfermidade ou doença mental não tenha discernimento para a prática do ato. Estima-se que cerca de 20 mil crianças menores de 14 anos fizeram aborto legal em decorrência de estupro a cada ano, nos últimos 5 anos no país. Calcula-se que a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Em média, há seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas. Por outro lado, segundo os mais recentes dados disponíveis do Ministério da Saúde, em 2018, 21.172 meninas de 10 a 14 anos estupradas deram à luz, sendo que 15.851 eram meninas negras, assim como a garota envolvida nesse episódio dramático. Nesses casos, a interrupção médica da gravidez não é evidentemente uma obrigação, mas sim um direito que deve ser garantido a todas as vítimas que assim desejarem, como modo de evitar a sobreposição de violências, a do estupro, a da gravidez forçada e de risco e a da maternidade compulsória, além da culpabilização, do estigma e de outras dificuldades e obstáculos que essas meninas-mães passam a enfrentar ao longo de suas vidas.
A ABA solidariza-se com a dor da menina e de sua família e apoia a equipe e o médico que atendeu a atendeu no hospital em Recife, assim como o magistrado e o promotor que contribuíram para garantir neste caso que o direito legal de interrupção da gravidez fosse respeitado. A ABA espera que a violação dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos dessa menina seja exemplarmente investigada pelas autoridades brasileiras e que os violadores sejam identificados e responsabilizados. A defesa da vida se faz através de necessárias políticas públicas para os direitos humanos, nesse caso, para meninas e mulheres e seus direitos sexuais e reprodutivos.
Brasília, 21 de agosto de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia e seu Comitê de Gênero e Sexualidade
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