Não ao Marco Temporal!
A Associação Brasileira de Antropologia é uma associação científica com quase sete décadas de existência que tem, ao longo de sua história, se dedicado a promover o conhecimento científico sobre a realidade brasileira, cumprindo rigorosos preceitos éticos e acadêmicos, pugnando pela defesa dos direitos humanos, do estado democrático de direito e de um ambiente sustentável e justo para todos. Através de sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), manifestamos nossas principais preocupações sobre o Projeto de Lei (PL) 2903 que tramita no Senado Federal, visando a estabelecer marco temporal e outros impeditivos para o reconhecimento e as demarcações das terras indígenas no país.
Nesse sentido, externamos nossa profunda preocupação sobre os flagrantes elementos que atentam contra a ordem constitucional vigente, o direito à sustentabilidade ambiental e os direitos humanos dos povos indígenas.
Entendemos, em primeiro plano, que o PL 2903 se propõe alterar matéria constitucional (Artigo 231 da Constituição Federal), o que requereria um caminho procedimental competente, pois, somente um Projeto de Emenda Constitucional poderia modificar preceitos presentes na Constituição. Como já bem alertou o Ministério Público Federal, este caminho pode ensejar um grave vício de inconstitucionalidade. O Senado precisa garantir o devido processo legislativo sobre temas que são tão caros à nossa Constituição Federal.
Ainda em matéria constitucional, é importante recordar que a garantia dos direitos coletivos dos povos indígenas foi consignada em nossa Carta Magna à responsabilidade direta da União Federal enquanto poder executivo. Isso em nada diminui o papel e a honra do poder legislativo que, em Assembleia Nacional Constituinte, criou e reforçou os mecanismos democráticos para a efetivação de uma sociedade mais justa e solidária. A centralidade da atuação do poder executivo para a garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas é condizente com os princípios fundamentais da divisão dos três poderes, constituindo uma das mais importantes políticas de Estado que a nossa Constituição delineou. Política esta que se baseia em estudos técnicos e científicos multidisciplinares rigorosos, e está norteada por significativa e detalhada legislação infraconstitucional estabelecida há mais de três décadas.
Nestes estudos, a Antropologia tem participado como disciplina científica importante, embora não seja única. Nossa expertise na investigação, descrição e interpretação das diversidades socioculturais humanas soma-se aos conhecimentos das áreas ambientais, demográficas, jurídicas e cartográficas, entre outras, para compor o quadro empírico e analítico sobre o qual se fundamentam os processos administrativos de demarcação de terras indígenas. O rigor nestes procedimentos de estudos e levantamentos possibilita também a escuta qualificada das vozes dos povos originários, que historicamente têm sido colocados à margem dos processos decisórios sobre suas vidas, muitas vezes apenas sofrendo os efeitos de decisões tomadas a milhares de quilômetros de distância de seus lares.
Assim, a tentativa de impor condicionantes que impeçam os processos de regularização fundiária das terras indígenas contradiz frontalmente a formulação basilar da Constituição de 1988, que é a de ampliar direitos, promovendo justiça e reparações históricas aos grupos sociais que sempre contribuíram com a formação da sociedade brasileira, mas que foram vilipendiados ao longo de toda a sua história. Nos preocupa profundamente a intenção reducionista e restritiva dos direitos indígenas propalada pelo texto do PL 2903 (nos seus artigos 4, 13 e 15), frontalmente contrária ao Artigo 231 da Constituição, para favorecer interesses daqueles que se apropriaram indevidamente de seus territórios. A Carta Magna não impõe condicionantes temporais ao exercício dos direitos dos povos indígenas, muito menos ao direito às terras que tradicionalmente ocupam. Limite temporal ao direito à terra é estranho ao texto constitucional, pois este reconhece o direito originário destes povos sobre seus territórios.
A Constituição é clara ao definir o direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Esse direito se manifesta a partir do vínculo que cada povo mantém com as terras que ocupam, exercendo sua habitação permanente, suas atividades produtivas, contendo os recursos ambientais necessários à sua reprodução física e cultural de acordo com seus usos, costumes e tradições. Os então constituintes, sabedores de que a vida dos povos indígenas sempre sofreu perseguições e violências, entenderam que é preciso demonstrar cabalmente a relação da coletividade com o território e, para isso, foram muito meticulosos ao definir os critérios de tradicionalidade da ocupação indígena. Em nenhum desses critérios registra-se alguma data originária ou prescritiva de direitos, posto que essas, na maioria esmagadora das vezes, recobrem os atos de violência, expulsão e esbulho praticados contra os povos indígenas ou suas comunidades.
O PL 2903 também se insurge perversamente contra as garantias de proteção aos povos indígenas ao estabelecer que aqueles povos que não se encontravam em seus territórios antes da Constituição de 1988, perderiam o direito ao seu território tradicional, desconsiderando seus violentos deslocamentos forçados, por particulares ou pelo próprio Estado. Pretendendo subverter a relação entre algozes e vítimas, a proposta do PL reifica o esbulho histórico, violenta a memória destes povos e silencia as atrocidades que continuam sendo cotidianamente praticadas em diversas partes do Brasil. Haja vista os casos recentes de violências e abandono contra o povo Yanomami, os assassinatos de jovens Guajajara e Pataxó, ou os altos índices de suicídios em muitas comunidades indígenas do país, motivados pelas inseguranças, agressões, preconceitos ou falta de perspectiva em que se encontram pela indefinição e ameaças sobre seus territórios.
O PL também pretende alterar a política de proteção aos povos isolados (Artigo 28), construída na experiência indigenista do próprio Estado Brasileiro, que já reconheceu os riscos e as dramáticas experiências passadas que dizimou ou reduziu drasticamente povos isolados após o contato, mesmo que em tese “pacífico”.
O PL também se revela racista ao postular que a política de reservas, a remoção e concentração forçada de povos indígenas em áreas diminutas, poderia dar a entes federados do Estado Brasileiro, ou mesmo particulares, o direito de ocupar as terras indígenas. No mesmo sentido, o texto do PL reproduz preceitos racistas e estereotipados, pressupondo que um povo indígena deixa de ser ele mesmo por conta de mudanças culturais ocorridas ao longo da história, para desqualificá-lo e, assim, denegar seus direitos ao usufruto exclusivo ao seu território (Artigo 16). Além de desqualificar a memória, a oralidade e as tradições indígenas, importantes meios e estratégias de transmissão dos conhecimentos e da experiência histórica entre as gerações dos povos indígenas (Artigo 4).
Ainda, visando denegar direitos indígenas ao usufruto exclusivo ao seu território, o texto do PL busca legitimar a prática ilegal de arrendamentos de terras públicas (Artigo 26). Esta prática, instituída pelo extinto SPI em algumas terras indígenas no Sul do país, tem sido, desde então, fonte de inúmeros conflitos em terras indígenas. Continuá-la na atualidade é reativar um passado no qual os recursos ambientais e o patrimônio indígena foram sistematicamente espoliados por interesses privados e estatais.
Além disso, o texto do PL também veda categoricamente (Artigo 13) a ampliação de limites de terras indígenas, sem considerar as diversas e adversas situações em que terras indígenas foram demarcadas sem a devida observância dos preceitos constitucionais, ou que foram objetos de pressões e violências no processo de regularização fundiária, prevenindo o dever de Estado de garantir os direitos dos povos indígenas. Ao mesmo tempo pretende rever os processos em via de serem homologados (Artigo 14).
Por fim, também ressaltamos que a tramitação deste PL não respeita a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, que assegura a consulta qualificada e o consentimento sobre decisões e procedimentos que afetam a vida e os territórios indígenas. No decorrer de todo o processo não houve a necessária consulta aos povos indígenas, apesar de inúmeras manifestações de lideranças e organizações indígenas de todo o país contrárias ao então PL 490.
A Associação Brasileira de Antropologia observa, assim, que o atual PL 2903 contém graves problemas formais e de conteúdo, afrontando nocivamente os princípios delineados na Constituição Federal, no intuito de fragilizar os direitos dos povos indígenas e os esforços de lhes assegurar justiça social e sustentabilidade ambiental. Importantíssimo enfatizar, neste sentido, que as terras indígenas compõem parte relevante do mosaico de áreas protegidas em nosso país, contribuindo para a garantia de conservação e sustentabilidade ambiental não só do Brasil como do planeta. Assim, alertamos e rogamos aos senhores e senhoras parlamentares que cumpram seu dever de guardiões da ordem constitucional, tratando esta matéria com toda a seriedade e gravidade que ela enseja, e que rejeitem integralmente tudo o que nela atenta contra os princípios de nossa Magna Carta e aos direitos dos povos originários.
Brasília, 05 de julho de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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