Manifestamos nosso repúdio à recusa da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) em conceder permissão para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) apoiar as ações do Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul nas comunidades Terena.
A pandemia da COVID-19 é uma crise sanitária e humanitária global, mas é uma doença que afeta desigualmente os grupos sociais, sendo que, particularmente, os povos indígenas são extremamente vulneráveis[1]. A resposta à COVID-19 entre povos indígenas no Brasil enfrenta inúmeros desafios, desde a estruturação das ações no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), até a garantia de acesso das populações residentes em áreas urbanas e fora das terras indígenas às redes municipais e estaduais do SUS. Desde abril, observa-se progressiva e acelerada interiorização da pandemia, atingindo grande contingente de população indígena dentro e fora das Terras Indígenas, em zonas urbanas e rurais, resultando em elevado impacto na saúde e em expressivo número de mortes de indígenas. Atualmente a pandemia alcança a marca de 700 óbitos, atingindo 155 povos indígenas, com mais de 26 mil casos confirmados[2].
A resposta adequada à COVID-19 depende de ações de vigilância para detecção precoce de casos e seus contatos, a fim de interromper a cadeia de transmissão do vírus, e da estruturação da assistência médica, para monitoramento dos doentes e diminuição da letalidade. Entretanto, os profissionais de saúde são um grupo com risco elevado para infeção pelo Sars-CoV-2[3], sendo a sua proteção também uma ação prioritária na contenção da pandemia. A Organização Internacional do Trabalho[4] ressalta a necessidade de ampliação do contingente de trabalhadores para garantir a manutenção dos serviços, particularmente diante dos afastamentos por motivos de saúde e do incremento de demandas.
Historicamente, o SASI-SUS apresenta problemas relacionados à contratação e retenção de profissionais de saúde, principalmente médicos. No transcurso da pandemia, observou-se expressivo contingente de trabalhadores da saúde indígena afetados pela COVID-19[5],com evidentes repercussões negativas sobre a capacidade de manutenção da assistência. Além do limitado e insuficiente suprimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e de testagem laboratorial dos trabalhadores de forma rigorosa, o cenário da pandemia expões desafios adicionais para a qualificação técnica dos trabalhadores para atuarem frente à pandemia. Nesse contexto, a incorporação de equipes de profissionais de saúde experientes e tecnicamente competentes à força de trabalho já em ação no campo, deve ser entendido como uma necessária alternativa para incrementar as ações no enfrentamento dessa crise sanitária e humanitária, minimizando impactos à saúde das populações mais vulneráveis.
Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) são uma organização humanitária internacional que atua em crises humanitárias desde 1971, no desenvolvimento de ações médico-assistenciais e preventivas, com experiência em vários países e, no Brasil, desde a década de 1990. No contexto da pandemia, eles têm acumulado larga experiência em mais de 40 países em quatro continentes. No Brasil, suas ações relacionadas à pandemia estão em curso desde abril, em São Paulo, Roraima, Rio de Janeiro e Amazonas, com as devidas autorizações do Estado brasileiro. Sua atuação tem apoiado a assistência à indígenas em parcerias com as secretarias municipais de Manaus, Boa Vista e São Gabriel da Cachoeira. A perspectiva de ampliação do escopo de atuação do MSF, em parceria com a SESAI, deveria ser considerada estratégica e positiva.
A situação das comunidades indígenas Terena diante da COVID-19 tem se agravado progressivamente nas últimas semanas. Desde o dia 03.08.2020, tornou-se pública a situação do agravamento da epidemia em Aquidauana/MS, assim como a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, devido à falta de médicos. Naquele momento, segundo o jornal O Globo, havia 170 infectados e 7 óbitos por COVID-19 na população Terena, e desde então a situação só se agravou. Em 19 de agosto, o Conselho Terena e a Apib contabilizavam 1.239 infectados e 41 mortos.
O MSF apresentou um plano, a partir de solicitação das lideranças Terena, para atender na região de Aquidauana, contemplando 5.000 indígenas. A SESAI, entretanto, desautorizou a ação do MSF. Vejamos parte da nota pública dos MSF: “Em resposta ao plano de MSF, a SESAI autorizou que MSF trabalhe apenas na Comunidade Aldeinha, no município de Anastácio, a menos de 5 km de Aquidauana e com uma população estimada em cerca de 500 pessoas. Aldeinha não fazia parte da proposta inicial de MSF[6]”.
Ressaltamos, o pedido partiu da própria comunidade, cujas lideranças conhecem de perto a importância e os limites dos serviços básicos de saúde durante no enfrentamento a COVID-19. O MSF, com parcerias estabelecidas com outros estados e municípios, atendeu prontamente o pedido, solicitando a parceria e aprovação da SESAI, que estava ciente do agravamento da situação. Entretanto, sem nenhuma consulta às comunidades que solicitaram o apoio, houve a negativa da ajuda humanitária.
Na sua resposta, a SESAI ainda afirma que militares estariam atuando na região, sem fornecer maiores detalhes sobre esta atuação, mas com previsão de término da ação para 30 de Agosto. A ausência de consulta às comunidades pela SESAI não aconteceu somente no caso Terena. A própria SESAI autorizou o ingresso de equipes médicas e jornalistas na Terra Indígena Yanomami sem consulta aos indígenas, desconsiderando os marcos legais nacional e internacionais de autodeterminação dos povos indígenas e de obrigatoriedade do Estado em consultar essas populações. No caso de Aquidauana, o agravante é que se trata de um apoio emergencial para o combate da COVID-19, doença com rápida transmissão e óbitos entre a população indígena.
Assinalamos que a negativa da SESAI diante de uma ajuda médica humanitária terá consequências diretas e graves na vida da população indígena. Dessa forma, apoiamos e reiteramos a solicitação feita pelo Conselho Terena, pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul de que seja autorizada a atuação dos Médicos Sem Fronteiras em conjunto com o DSEI Mato Grosso do Sul. Consideramos, além disso, em consonância com a Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho, que as organizações indígenas devem obrigatoriamente participar e serem consultadas sobre as medidas de enfrentamento da COVID-19 em seus territórios.
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO
Associação Brasileira de Antropologia – ABA
[1]https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2020/126.asp; https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6234:opas-insta-paises-a-intensificar-esforcos-para-impedir-maior-propagacao-da-covid-19-entre-povos-indigenas&Itemid=820; https://nacoesunidas.org/covid-19-e-grave-ameaca-para-os-povos-indigenas-diz-bachelet/
[2]http://emergenciaindigena.apib.info/dados_covid19/
[3]O Boletim Epidemiológico Especial no. 21 relativo a Semana Epidemiológica 27 (28/06 a 04/07), apresentou que dos 786.417 casos de síndrome gripal em profissionais de saúde, 22,1% foram confirmados para Covid-19 (SVS/MS, 2020) e com 138 óbitos de SRAG causadas pela Covid-19.
[4]WISKOW, Christiane. HOPFE, Maren Hopfe. Five ways to protect health workers during the COVID-19 crisis. International Labour Organization (ILO). Disponível em: https://iloblog.org/2020/04/01/five-ways-to-protect-health-workers-during-the-covid-19-crisis/. Acesso em 6 Abr.2020.
[5]https://www.nytimes.com/2020/07/19/world/americas/coronavirus-brazil-indigenous.html
[6]https://www.msf.org.br/noticias/msf-reitera-pedido-para-atuar-em-comunidades-indigenas-do-mato-grosso-do-sul
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