A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através de sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), vem a público externar preocupação e inquietação com a gravíssima situação de violência contra os indígenas Pataxó Hã-Hã-Hãe da Terra Indígena Paraguassu-Caramuru, no sul do estado da Bahia. O mais recente ataque armado, antecedido de vários outros – a exemplo daquele que vitimou o jovem cacique Lucas Kariri-Sapuyá, em presença do seu filho, em 21 de dezembro de 2023 – resultou no assassinato da líder espiritual Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Dona Nega Pataxó, e deixou inúmeras pessoas gravemente feridas, entre as quais o cacique Nailton Muniz, irmão de Dona Nega e liderança nacionalmente conhecida.
O povo Pataxó Hã-Hã-Hãe vive, há décadas, uma cronologia marcada pela opressão, devido à luta empreendida pelo reconhecimento de suas terras, sendo abundantes os registros de deslocamentos forçados, aldeias incendiadas, espancamentos, ameaças, agressões de variadas ordens e assassinatos de lideranças. Sequer jovens e crianças são poupados. O incremento recente das violências e da disposição de grupos armados para agir na região, de forma deliberada, conta, conforme as evidências, admitidas até por órgãos públicos, com a complacência de agentes públicos de segurança do estado da Bahia.
Recente levantamento produzido pelo Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA) e pela Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) expõe a face cruel da violência em curso nesse território indígena, que foi regularizado em 2012, após décadas tramitando no Supremo Tribunal Federal: 31 pessoas assassinadas, sendo 8 mortes ocorridas nos dois últimos anos, incluindo Lucas e Dona Nega.
Em Nota conjunta divulgada em 23 do mês corrente, a Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Estado da Bahia e o Ministério Público Federal na Bahia manifestam também preocupação com “a flagrante ausência de medidas estruturais e efetivas por parte do Governo Federal e Governo do Estado da Bahia diante dos contínuos e reiterados ataques sofridos pelos povos indígenas em nosso Estado”. Afirmam, ademais, que desde o início de 2023 têm encaminhado “reiteradas solicitações aos órgãos estatais clamando por um programa de segurança voltado às necessidades e especificidades destes grupos vulneráveis. No entanto, a resposta até o momento tem sido insuficiente”.
A Nota alude ao Gabinete de Crise instaurado, em 2023, pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), em face das mortes de três jovens indígenas pataxós – Gustavo Conceição (14 anos), em 4 de setembro de 2022, Nawir Brito de Jesus (17 anos) e Samuel Cristiano do Amor Divino (25 anos), em 18 de janeiro de 2022 – e que, embora encerrado sem o encaminhamento de soluções, constatou “O envolvimento de uma milícia armada, composta por policiais militares, nos assassinatos”.
No caso mais recente, é fartamente noticiada a existência de um grupo, que se intitula “INVASÃO ZERO” e articula-se através do aplicativo de conversas WhatsApp, organizado por fazendeiros da região que não reconhecem os direitos territoriais dos povos indígenas e que buscam desqualificar suas lideranças. Este grupo agora partiu para a retaliação armada, que vitimou os Pataxó e matou Dona Nega. Imagens divulgadas por lideranças e organizações indígenas sobre o último episódio mostram um número significativo de veículos no local antes dos ataques com armas de fogo. Segundo noticiado pela grande imprensa, agentes fardados da Polícia Militar da Bahia teriam agido para facilitar que o grupo armado alvejasse e agredisse os indígenas.
Também a imprensa noticiou, no final do dia 21/01/2024, a prisão de dois integrantes do grupo armado, que não tiveram seus nomes divulgados. No dia 23/01/2024, especificamente o jornal O Globo divulgou resultado da perícia balística pela Polícia Civil, confirmando que o projétil que atingiu Dona Nega foi deflagrado pela arma apreendida com um dos presos, um jovem de 19 anos, filho de um fazendeiro. O outro detido é um policial militar aposentado, de 60 anos, que estava no local portando uma arma (que também havia sido disparada naquele dia, de acordo com a perícia). No inquérito, a polícia investiga os crimes de homicídio, tentativas de homicídio e associação criminosa armada, de acordo com a informação jornalística. A competência judicial do processo foi atribuída à Justiça Federal.
Segundo o amplo noticiário que tem repercutido o assassinato de Dona Nega Pataxó e as próprias denúncias de lideranças indígenas, o grupo “INVASÃO ZERO” está se formando como uma milícia armada, que se sente tão livre para agir que circula cards e vídeos com a marca do movimento pelas redes sociais e grupos de WhatsApp, e faz convocação geral para “reintegrações de posse”.
Impõe-se, com urgência, a investigação sobre a existência e a extensão desses grupos armados, que estariam usurpando o papel do Estado, na suposta resolução de conflitos, utilizando-se, algo extremamente grave e ilegal, da violência física e da repressão armada. Eles se auto identificam como “produtores unidos em defesa de suas propriedades, urbanas e rurais”, centrados inicialmente nos estados da Bahia e de Goiás, mas com pretensões de expansão para todo o território nacional, até o presente já com ramificações no Pará (em Altamira) e no Maranhão.
Admitindo-se a veracidade desses fatos, conforme os indícios que se apresentam, o Estado brasileiro encontra-se sob grave ameaça, assim como a cidadania no Brasil, principalmente o seu segmento indígena, socialmente mais vulnerável. É imprescindível, portanto, restabelecer o controle sobre as forças de segurança pública, assegurando as suas funções dentro da lei e da ordem constitucionais, e coibindo as ações de milícias, no campo e nas cidades.
Urge, em suma, uma investigação profunda para saber quem são todos os responsáveis por esta organização INVASÃO ZERO, e por seus atos de violência, sendo imprescindível também elucidar qual foi a postura das autoridades locais, incluindo as policiais, quais as providências tomadas, assim como averiguar e investigar as denúncias de possível complacência de agentes de órgãos de segurança pública, sejam eles municipais, estaduais ou federais.
Diante do exposto, a ABA denuncia e repudia as violências cometidas contra o povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe e solicita aos órgãos públicos competentes agilidade e transparência sobre os procedimentos de responsabilização e punição dos envolvidos nos atos de violência e assassinato. É importante ressaltar que, por se tratar de caso envolvendo povo indígena, a legislação do país define que as ações que lhe afetam são de competência e alçada da Justiça Federal, muito acima do próprio estado da Bahia, sem desconsiderar eventuais outras competências relacionadas ao caso.
Esta é a expectativa da Associação Brasileira de Antropologia que, nesta oportunidade, manifesta seu apoio em respeito aos direitos territoriais e humanos do povo Pataxó Hã Hã Hãe e aos demais povos indígenas da Bahia, e cobra das autoridades responsáveis as medidas de segurança e proteção para os indígenas do sul e extremo sul da Bahia.
Brasília, 25 de janeiro de 2024.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI)
Leia aqui a nota ampliada em PDF.
Nota encaminhada às seguintes autoridades: Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública (MJSP); Diretor-Geral da Polícia Federal (PF); Ministra de Estado dos Povos Indígenas (MPI); Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI); Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH); Ministro da Casa Civil da Presidência da República (CC); Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão/Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6ª CCR/MPF); e Deputada Federal (PSOL-MG)/Presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais.