A Associação Brasileira de Antropologia, através de sua Comissão de Direitos Humanos, considera gravíssima a denúncia publicada no dia 24 de julho de 2020, pelo portal UOL, sobre a existência de um dossiê elaborado, em junho, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública para monitorar um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança pública – identificados pelo documento como integrantes do “movimento antifascismo” -, e ainda dois ex-secretários nacionais de segurança pública e um ex-secretário nacional de Direitos Humanos, sendo também eles professores universitários.
O documento foi elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (SEOPI), elevada a essa condição pelo decreto presidencial nº 9662, de janeiro de 2020, com a ampla missão de desenvolver “ações de inteligência” sem necessidade de controle ou acompanhamento judicial. Segundo publicado pelo portal, o “dossiê” contém um arquivo destinado à construção de processos controversos de criminação de condutas. Nele constam nomes e, em alguns casos fotos e endereços, bem como material diverso como perfis de facebook, pertencentes aos agentes de segurança pública considerados “como mais atuantes”; um livro em pdf intitulado “Antifa – o manual antifascista”; dois manifestos em prol de uma “aliança popular antifascista” (assinados e divulgados em 2016 e recentemente em junho 2020), e uma série de “notícias relacionadas a policiais antifascismo”. Foi atribuído ao documento carácter “sigiloso” (por mais de 100 anos!), sendo distribuído entre vários outros órgãos de inteligência e segurança do governo.
A ação do Ministério da Justiça, através da SEOPI, remete de forma imediata aos tempos da ditadura militar, cujas metodologias de “inteligência” vasculhavam a vida das pessoas produzindo “terroristas” a partir de um controle político ideológico de suas atuações. Essas metodologias estão ancoradas também na tradição inquisitorial das burocracias brasileiras, sustentada no sigilo e na suspeição generalizada da população. As iniciativas do Ministério da Justiça, bem como as declarações do atual presidente de chamar de “marginais e terroristas” aos manifestantes de uma “mobilização antifascista”, constituem práticas inaceitáveis em um regime democrático.
É evidente que, mais do que cumprir os objetivos da Lei Brasileira de Informação (nº 9883/1999) de garantir “a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”, a produção desse tipo de dossiê tem como objetivo intimidar e constranger, nesse caso, servidores públicos da área de segurança e outras personalidades que se posicionam, através de diversas formas e veículos, no uso da liberdade de expressão garantida em um estado democrático de direito. O fato das manifestações de figuras públicas, ou de quem quer que seja, não estarem de acordo com as decisões governamentais, ou questionarem as inúmeras e recorrentes declarações ofensivas do presidente da República não pode ser motivo para colocar em ação os recursos de inteligência do Estado, ainda mais de forma sigilosa e restrita. Sendo assim, essa tentativa de constrangimento só pode ser lida como mais uma apropriação dos recursos púbicos para fins político-ideológicos e particulares dos atuais governantes.
Pelo exposto, repudiamos a ação do Ministério da Justiça e qualquer outra iniciativa nesse sentido, e reafirmamos a defesa do direito à liberdade de pensamento e de expressão para todos os cidadãos, sejam servidores públicos, profissionais, membros de movimentos sociais, entre outras categorias. Da mesma forma nos solidarizamos com as pessoas que são alvo desse tipo de controle e intimidação ideológica e reforçamos a necessidade de publicidade, transparência e controle institucional sobre as ações do governo; em especial sobre aquelas realizadas com resquícios de metodologias autoritárias, ditatoriais e inquisitoriais.
Brasília, 27 de julho de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Direitos Humanos
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