No dia 24 de junho, última sexta-feira, ocorreram episódios de violência em Mato Grosso do Sul, contra duas comunidades dos povos Kaiowa e Guarani. Os fatos aí envolvidos apresentam uma gravidade extrema e é neste sentido que a ABA (Associação Brasileira de Antropologia), a ABIA (Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges), a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso a Ciência), a ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) e a SBS (Sociedade Brasileira de Sociologia) vem aqui se pronunciar.
Muitas são as denúncias sobre o estado de terror imposto em Mato Grosso do Sul no que diz respeito aos direitos territoriais dos povos indígenas dali originários. Expropriações de terra, ameaças físicas e psicológicas, desaparecimentos e assassinatos têm se constituído num modus operandi entre os povos Kaiowa e Guarani, o qual se perpetua, sem que tal estado de coisas venha a ter fim. Tal barbárie é fruto do declínio do estado democrático de direito, em que as forças governantes, adminstrativas e policiais deveriam atuar conforme nossos marcos legais. Os recentes episódios, contra as comunidades de Guapo’y Mi Tujury (em Amambai) e de Kurupi/Santiago Kue (em Naviraí), na verdade, vêm a se somar a uma série de outros, impactando comunidades que buscam retornar a seus territórios de ocupação tradicional (os tekoha, isto é, os lugares onde estes indígenas realizam seu modo de ser e viver), de onde forçadamente tiveram que sair, por efeitos de uma política neocolonial, ao longo do seculo XX.
Sem elencar todos os episódios, lembramos que no ano de 2002, ao retornar a seus espaços territoriais, a comunidade de Kurusu Amba teve assassinada uma idosa, Churite Lopes. Em 2003, foi a vez da comunidade de Takuára ter seu líder, Marcos Verón, assassinado. Em 2009, as comunidades de Pyelito Kue e de Mbarakay foram atacadas, com vários de seus integrantes sendo feridos por projéteis de borracha. Também em 2009 a comunidade de Ypo’i teve Genivaldo e Rolindo Vera sequestrados; o corpo de Genivaldo foi encontrado em um córrego crivado de tiros, mas o corpo de Rolindo Vera nunca foi recuperado. Em 2011, a comunidade de Guaivyry foi atacada, resultando no desaparecimento de seu líder Nísio Gomes. Posteriormente, a Polícia Federal concluiu que ele foi assassinado. Ressalte-se também a morte, em 2015, de Simião Vilhalva na comunidade de Ñanderu Marangatu, assassinado com tiros na cabeça.
A maioria destas ações foram concretizadas por empregados de fazendeiros locais, em alguns casos por meio de uma empresa de segurança privada, a Gaspen, que foi identificada pelo Ministério Público Federal como tendo atuação paramilitar criminosa.
O que se assistiu agora, perante a novas tentativas de retorno ao território, foram ações violentas, de seguranças privados armados, no caso de Kurupi, e da Polícia Militar, no caso do Guapo’y Mi Tujury. Neste último, a presença da PM caracteriza uma ação de forças propriamente do estado que, pelas imagens e filmagens divulgadas pelos indígenas, se mostrou como uma operação de guerra. Mais precisamente, viu-se uso de força massiva por parte da PM, com utilização de um helicóptero, disparando-se enorme quantidade de tiros com projéteis de borracha mas também armas de fogo, o que resultou em mortes em Guapo’y Mi Tujury (uma delas já identificada: Vito Fernandes) e em pessoas gravemente feridas em ambas as comunidades. Segundo informações do Hospital Regional de Amambai, no sábado (dia 25), três indígenas foram liberados da internação hospitalar, mas pelo menos quatro ainda se encontravam em estado de maior atenção, inclusive com ferimentos por arma de fogo na cabeça e em outras regiões vitais do corpo.
A PM buscou justificar sua conduta com o argumento de que fora acionada para “coibir crime contra o patrimônio”. Negou, assim, a condição de se tratar de um conflito territorial de caráter étnico, envolvendo indígenas, com um uso absolutamente desproporcional de força.Tais ações, como amplamente noticiado pelos próprios indígenas e pelas mídias informativas, não foram amparadas em mandado judicial. Os fatos são da maior gravidade.
É perante esse quadro geral de violências e de violações aos direitos constitucionais e humanos, que, ao tempo que nos solidarizamos com as comunidades Kaiowa e Guarani, nos unimos às instituições e organizações que vêm denunciando os casos e requerendo a sua federalização, com uma investigação imparcial de responsabilidades, e a tomada das devidas e urgentes providências legais. É constatável também dos fatos uma persistência inamovível de cada comunidade em recuperar seus territórios tradicionais, o que remete ao princípio constitucional do reconhecimento destes, competindo ao Estado brasileiro demarcá-los.
Brasília-DF, 28 de junho de 2022.
Leia aqui a nota em PDF.