A Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia vem a público denunciar e repudiar as operações policiais resultantes em mortes no Estado do Rio de Janeiro, acometidas durante a pandemia devida ao COVID-19. Desde 16 de março, tomado como data do início das medidas de isolamento social, as ações policiais resultaram em, pelo menos, 70 pessoas mortas.
Segundo dados do Observatório da Segurança RJ[1], os meses de abril e maio desse ano, representaram um aumento de número de mortes em relação ao ano anterior. No caso de abril, foi registrado um aumento de 57,9 % de pessoas mortas em relação a 2019, possivelmente o ano mais sangrento das duas últimas décadas, em se considerando as mortes decorrentes de intervenção policial. Entre as vítimas fatais, casos como o de João Pedro Mattos, de 14 anos, assassinado em sua casa em São Gonçalo; do jovem João Victor Gomes da Rocha, morto ao sair para comprar uma pipa, na Cidade de Deus; do Iago César Gonzaga, de 21 anos, torturado e morto durante uma operação na favela de Acari; do Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, atingido e morto no Morro da Providencia, e da chacina ocorrida no Complexo do Alemão, que deixou 13 mortos, colocam em evidência a violência embutida nas operações policiais, que tem como principal motivo alegado o “combate ao tráfico de drogas”.
A atuação truculenta da polícia tem se constituído, no Estado do Rio de Janeiro, em uma política de morte que produz vítimas notoriamente em territórios de favela e entre a população negra. Jovens e crianças têm sucumbido a essas ações de forma aterradora e cruel. Suas mortes violentas, causadas pelo Estado e sustentadas socialmente pela naturalização da desigualdade e o racismo, são alvo da denúncia de movimentos sociais e de organizações de familiares que transformam seu luto em luta há muitos anos, contra o “genocídio da população negra”.
O agravamento desse quadro no contexto atual de pandemia amplia o caráter inaceitável de tais ações. Os governos – federal, estadual e municipal- têm negligenciado políticas de prevenção e auxílio social em relação ao Covid-19. Em contraste, os movimentos sociais vêm se organizando de forma exemplar para cumprir o papel de que o Estado se omite. Contudo, essa omissão se torna definitivamente criminosa diante dos alarmantes relatos denunciando que as ações policiais foram realizadas em momentos de distribuição de cestas básicas e outros produtos, realizadas por inteira iniciativa e organização de coletivos e movimentos sociais.
Como viemos sustentando em outras intervenções, a pandemia tem evidenciado as condições de desigualdade estrutural da sociedade brasileira. As mortes produzidas pela polícia, comandadas pelo governo do Estado do Rio Janeiro, representam um dos maiores abusos de poder. Essa “política da morte” já tem sido pontualmente denunciada como “crime contra a humanidade”. O fato delas ocorrerem de forma potencializada durante a pandemia, interrompendo brutalmente ações de auxílio social, impedindo a população de se abastecer e escandalosamente enquanto as famílias se encontram em casa, as torna, além de ilegais, um “esculacho”[2]; um insulto moral inaceitável diante dos privilégios da classe média e branca que fica em casa, bem como de quem, quebrando as orientações oficiais de manutenção do isolamento social, diz querer privilegiar a liberdade em detrimento à vida.
Por tudo, repudiamos as mortes causadas pelas ações violentas, nos solidarizamos com as famílias das vítimas e com aqueles que colocam suas vidas em risco nas sucessivas ações de auxílio social, na expectativa de que o repúdio e a indignação pautem políticas públicas respeitosas dos direitos da população.
Brasília, 25 de maio de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Direitos Humanos
[1] http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/05/Operac%CC%A7o%CC%83es-policiais-no-RJ-durante-a-pandemia.pdf
[2] PIRES, L. Esculhamba, mas não esculacha! – Uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil, v. 50. Niterói: EDUFF, 2011. Disponível em: http://www.eduff.uff.br/index.php/livros/173-esculhamba-mas-nao-esculacha-uma-etnografia-dos-usos-urbanos-dos-trens-da-central-do-brasil
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