A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), junto com sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), manifesta sua indignação com a operação policial realizada na manhã de 16 de setembro, na aldeia Santa Isabel do Morro, no Parque Indígena do Araguaia, município de Lagoa da Confusão (TO), que levou à morte do indígena Iny-Karajá Lourenço Rosemar Filho de Mello. A operação ocorreu sem o conhecimento da comunidade ou das lideranças, que relatam terem sido surpreendidos com a chegada da Polícia em caminhonetes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e helicópteros. O uso da força letal do Estado na terra Iny-Karajá, com um resultado trágico, traz consigo o peso de um passado conturbado que marca a história do Médio Araguaia.
Os Karajá e Javaé são os povos indígenas mais antigos do Médio Araguaia, estando entre os poucos que sobreviveram à brutalidade da colonização. Desde o século XVII, a colonização do Rio Araguaia se deu, principalmente, pelos rios, com a aproximação de bandeirantes, exploradores, comerciantes, missionários, militares e a instalação de aldeamentos e prisões para indígenas em suas margens. No século XX, veio a frente agropecuária ainda incipiente e seus pequenos povoados, que chegaram ao médio Araguaia por via fluvial e terrestre. Se a primeira trouxe grande redução populacional aos povos indígenas do Araguaia, seja por escravização, aprisionamento, trabalho forçado ou por ondas de epidemias desconhecidas, a segunda, a partir das décadas de 1930/40, acirrou ainda mais a depopulação devido a massacres e confrontos diretos, como no caso dos Xavante e Avá-Canoeiro, ou epidemias mortais que se alastraram pelas aldeias, como no caso dos Karajá e Javaé, tornando-se um dos processos mais letais para esses povos e sua territorialidade tradicional, os quais perderam o controle histórico que mantinham sobre a área em que viviam.
Apesar da contemporaneidade e proximidade de Brasília, o genocídio e perda territorial de povos indígenas do médio curso do Rio Araguaia (Karajá, Javaé, Tapirapé, Xavante, Avá-Canoeiro do Araguaia) no século XX foi flagrantemente invisibilizado pelo discurso hegemônico e triunfal da colonização do interior do país pela chamada Marcha para o Oeste, que continuou com a construção de Brasília e a ocupação da Amazônia pelos governos militares, com novos desdobramentos no século XXI. O Araguaia foi escolhido como ponto de partida desse movimento de colonização lançado por Vargas em 1938 e posto em prática com a criação da Fundação Brasil Central (FBC) em 1943. Os conflitos com os indígenas aumentaram consideravelmente a partir de 1959, depois que o estado de Mato Grosso vendeu parte do território tradicional dos Xavante, Karajá e Tapirapé, considerado como terras devolutas, a grandes proprietários do sul/sudeste. Após o golpe de 1964, com o plano de “integração” e expansão econômica na Amazônia, os latifúndios que se instalaram no Araguaia na década de 60 tornaram-se notórios pela violência que cometeram contra índios e posseiros.
Enquanto os territórios e povos Xavante, Tapirapé e Karajá foram brutalmente atingidos pela BR-158 e seus desdobramentos, os Javaé e Avá-Canoeiro do Araguaia tiveram seu território invadido definitivamente e desfigurado pelas novas ondas de colonização proporcionadas pela Belém-Brasília.
A população dos Karajá e Javaé foi bastante reduzida por surtos epidêmicos, que eram atribuídos a feitiços intencionais e causavam grandes rupturas e conflitos entre os sobreviventes nessa fase de desestruturação entre as décadas de 1920 e 1960. No caso Karajá, o órgão indigenista estimulou a transferência e concentração dos sobreviventes em postos indígenas ou novas aldeias na Ilha do Bananal, deixando o antigo território indígena da margem esquerda do Araguaia livre à invasão agropecuária. A política estatal de transferências era prática antiga do Serviço de Proteção aos Índios, mas foi acentuada nos governos militares. Fragilizados pelas mortes sucessivas, a opção pela transferência foi irrecusável, na maior parte dos casos.
Na região do Araguaia, todos os grupos que sofreram algum tipo de transferência, seja por imposição ou sugestão do órgão indigenista, militarizado a partir da década de 60, como os Xavante setentrionais (em 1966), os Avá-Canoeiro (em 1976), os Javaé (nas décadas de 1950, 1960 e 1970), os Tapirapé (em 1950) e os Karajá (nas décadas de 1920 a 1970), perderam o controle sobre a maior parte do seu antigo território e foram levados a diversas formas de degradação social em aldeias populosas, como carência nutricional, alcoolismo, marginalização social e, mais recentemente, suicídio.
Observamos nos últimos anos a crescente presença militar no controle de instituições como a Fundação Nacional do Índio, seguido pelo desmonte da própria Fundação, que se distancia cada vez mais dos interesses coletivos dos povos indígenas no Brasil. Desmonte que tem aberto espaço para uma política baseada na força, criando ambiente para decisões equivocadas como a do Servidor da Funai que se colocou à disposição de uma polícia despreparada, acompanhando a operação desastrosa presenciada pelos moradores da Aldeia Santa Isabel do Morro na manhã do dia 16 de setembro.
A ação foi articulada entre as Polícias Civis do Tocantins e do Mato Grosso e, segundo nota da Secretaria de Segurança Pública do Tocantins, entraram na aldeia para cumprir mandados de prisão contra Lourenço. A operação ocorreu de forma preocupante, sem a presença da Polícia Federal, responsável por mediar situações de conflito envolvendo povos indígenas. As lideranças relatam que em nenhum momento foram informadas pela FUNAI a respeito da operação ou da entrada da polícia civil no território Indígena, desrespeitando a autonomia do povo Iny-Karajá e expondo toda a aldeia à violência e a insegurança.
Acrescente-se que nenhuma das recomendações da Resolução Nº 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) parece ter sido respeitada neste caso.
Manifestamos nossa solidariedade aos povos indígenas do Médio Araguaia, em especial ao povo Iny-Karajá de Santa Isabel do Morro. E a ABA pede aos órgãos responsáveis a apuração dos fatos ocorridos na manhã de 16 de setembro em Santa Isabel do Morro e o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF) garantindo uma investigação imparcial, prezando pela segurança e estabilidade da comunidade Iny-Karajá.
Brasília, 17 de setembro de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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