A Associação Brasileira de Antropologia, por meio de seus Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e Comitê Quilombos, e os grupos de pesquisa abaixo assinados vêm a público manifestar profunda preocupação no tocante às ações do estado em relação à garantia dos direitos fundiários e de proteção da integridade física e sociocultural da comunidade quilombola da Lapinha, localizada no município de Matias Cardoso, Minas Gerais.
No dia 30 de setembro, a comunidade quilombola da Lapinha, que também se autoidentifica, enquanto vazanteira, retomou parte de suas terras tradicionalmente ocupadas, localizadas na Fazenda Casa Grande, área sob domínio do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) desde o ano de 2010. Cabe ressaltar que a Fazenda Casa Grande foi declarada de interesse público pelo então governador do estado de Minas Gerais, por meio do Decreto 47.574 de 27 de dezembro de 2018, “com destinação para fins de regularização fundiária e titulação, com caráter gratuito, inalienável, coletivo e por prazo indeterminado”, à Associação Quilombola da Lapinha.
O Quilombo da Lapinha, situado às margens do rio São Francisco, é constituído pelas comunidades de Vargem da Manga, Lapinha, Saco (também conhecida como Santa Efigênia) e Ilha da Ressaca. É formado por cerca de 160 famílias autorreconhecidas com certificação da Fundação Cultural Palmares desde 12 de julho de 2005. Seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais em 29 de dezembro de 2015, e no Diário Oficial da União ( DOU) em 30 de dezembro de 2015.
O Quilombo da Lapinha está entre um dos maiores quilombos do “Território do Campo Negro do Jaíba”[1], e é reconhecido por sua importância para a formação social do Norte de Minas Gerais. O batuque e o samba de roda, característicos do grupo, são realizados em momentos religiosos e de festividades, sendo também compartilhados em situações de luta junto a outras comunidades quilombolas, vazanteiras e pesqueiras de sua rede de mobilização social. O Sistema Agrícola Tradicional Vazanteiro (SATV) do grupo está associado às dinâmicas do rio São Francisco e seus ciclos de cheias e vazantes. Se caracteriza por um complexo manejo e uso de distintos agroambientes que garantem o sustento de diversas comunidades quilombolas e vazanteiras como a da Lapinha; e permite o abastecimento dos mercados locais da região. Cabe ressaltar que o SATV foi reconhecido pela EMBRAPA e premiado pelo BNDES[2], como exemplo de boas práticas agrícolas a serem valorizadas no contexto de mudanças climáticas e salvaguardadas como meio eficiente de preservar a biodiversidade.
A criação do Parque Estadual Lagoa do Cajueiro, uma das unidades de conservação integral compensatória à etapa 2 do projeto de fruticultura irrigada Jaíba (decreto n°39.954, em 08 de outubro de 1998), intensificou os conflitos territoriais com a comunidade, que passou a ser criminalizada e ter seu modo de vida impedido pelo IEF-MG. Tais conflitos já foram objeto de análise de outras notas[3] da Associação Brasileira de Antropologia e de denúncias de diversas instituições acadêmicas, entidades civis e movimentos sociais.
É fato que a área da Fazenda Casa Grande, apesar de estar sob domínio e uso do IEF-MG, não faz parte da delimitação do Parque Estadual Lagoa do Cajueiro. E que o Decreto 47.574 de 27 de dezembro de 2018 ratifica a função social desta propriedade, sua destinação fundiária e as condições necessárias à reprodução cultural, social e econômica em favor da Associação Quilombola da Lapinha, beneficiando gerações futuras. A ação ostensiva da administração pública diante do contexto de retomada das terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade de Lapinha é injustificável e fere os direitos garantidos a mesma pela Constituição Federal.
As entidades e grupos de pesquisa que assinam esta nota reconhecem a legitimidade do pleito da comunidade quilombola da Lapinha pelo acesso ao território, e pela reivindicação da imediata destinação das terras da Fazenda Casa Grande à comunidade, conforme já estabelecido no Decreto Nº 47.574/2018.
Espera-se que o estado cumpra o que está previsto neste decreto supracitado, resguardando os direitos da comunidade da Lapinha.
Demanda-se a urgente retomada do processo administrativo de regularização fundiária e a titulação integral das áreas que compõem o território da Lapinha, cumprindo o que rege o Decreto 4.887/2003 e os preceitos da Constituição Federal Brasileira de 1988.
Assinam este documento,
– Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos (ABA)
– Comitê Quilombos (ABA)
– Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA/UNIMONTES-MG)
– Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG)
– Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Migrações e Comunidades Tradicionais do São Francisco – OPARÁ/MUTUM (UNIMONTES/MG)
– Laboratório de Estudos sobre Ação Coletiva e Cultura (LACC – Núcleo PE Projeto Nova Cartografia Social)
– Etnologia, tradição, ambiente e pesca artesanal (ETAPA/UFRN /UFPE – Núcleo RN Nova Cartografia Social).
– Núcleo de Estudos em Agroecologia e Nova Cartografia Social (NEA/UFRB – Núcleo RN Nova Cartografia Social).
– Sociedade Brasileira de Ecologia Humana – SABEH.
Brasília, 06 de outubro de 2023.
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[1] Esta noção é postulada por Costa (1999) para se referir à existência de um grande território de ocupação e resistência negra no Norte de Minas Gerais, com origem datada no século XVI. Tal território foi expandido no século XIX, com abolição da escravatura e se constituiu por um conjunto de localidades que abrigava uma sociedade multicultural e pluriétnica no vale São Francisco, Verde Grande e Gorutuba.
[2] https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1109452/sistemas-agricolas-tradicionais-no-brasil
[3] A última nota da ABA foi publicada no dia 14 de março de 2022 e faz referência às violações dos direitos de participação e consulta aos PCTs, por parte do IEF-MG, no processo de elaboração dos planos de manejo de unidades de conservação sobrepostas a territórios tradicionais na região do médio São Francisco. Sendo um deles o Parque Estadual Lagoa do Cajueiro, sobreposto ao Quilombo da Lapinha. Vide: https://portal.abant.org.br/nota-tecnica/