A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através de seus Comitês Migrações e Deslocamentos e de Antropologia e Saúde, vem, por meio desta nota, saudar a Coordenadoria de Acesso e Equidade (CAEq), da Coordenação-Geral de Saúde da Família e Comunidade (CGESCO), do Departamento de Estratégias e Políticas de Saúde Comunitária (DESCO) da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) pela publicação da Nota Técnica nº 8/2024. Trata-se de apresentar orientações e diretrizes de boas práticas, para gestores e profissionais de saúde, sobre o acesso à saúde de pessoas migrantes, refugiadas e apátridas, no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), em todos os territórios brasileiros.
A Nota Técnica representa um avanço real na efetivação do direito à saúde das populações migrantes no Brasil, sendo o primeiro documento de orientação às equipes e gestores de saúde sobre o atendimento dessas populações no país. O documento enfatiza a igualdade de direitos entre migrantes e nacionais, sublinhando, entre outras coisas, o direito de acesso ao SUS, a despeito da situação migratória ou documental dos usuários, e colocando em relevo a necessidade da adoção de abordagens interculturais nos atendimentos em saúde para migrantes.
No intuito de poder contribuir para este avanço, gostaríamos, porém, de apontar algumas questões potencialmente problemáticas no texto da Nota Técnica nº 08/2024. Acreditamos que essas questões poderiam ser aprimoradas, visando uma melhor compreensão pelo público amplo a que se destina, em especial aos gestores e profissionais de saúde da APS. A este respeito, os referidos comitês da ABA que subscrevem este documento vêm a público pontuar que:
- Muitas pesquisas antropológicas recentes argumentam sobre a centralidade da questão do racismo para a experiência de migrantes no Sistema Único de Saúde, em específico, e no Brasil, de maneira mais ampla. Diante de tais evidências, a ABA recomenda que a Nota Técnica nº 08/2024 aprofunde, em seu no texto, a compreensão de que acesso e cuidado à saúde ofertados às pessoas migrantes, refugiadas e em deslocamentos dependem da consideração das desigualdades derivadas da estruturação racista da sociedade brasileira, de modo que serviços e profissionais de saúde devem se atentar para as estratégias de acolhimento e humanização no dia a dia dos serviços e no atendimento às pessoas. Tal reforço acentua a importância da menção à “raça” presente no item 6.4 da Nota, e da menção aos “atendimentos antirracistas” no ponto 7.2, contribuindo indubitavelmente para melhorias na vida de migrantes no Brasil e de suas experiências no SUS.
- Na leitura da Nota, identificamos a contradição na redação dos seguintes itens: no item 6.1, o registro e a assistência devem ocorrer “sem exigência de documentação específica que possa impedir ou restringir o acesso, o cadastro ou a notificação” e, no Item 8.3, orientar profissionais e gestores a “considerar como documento válido para a confecção do Cartão Nacional de Saúde (Cartão SUS) e demais registros: Passaporte, Registro Nacional Migratório (RNM), Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), Protocolo de Solicitação de Refúgio, Carteira de Trabalho e Cadastro de Pessoa Física (CPF).” (página 08). Ao condicionar a confecção do Cartão SUS à apresentação dos documentos listados, a Nota fere o direito de acesso e fragiliza a situação de saúde dos migrantes no país, em especial daqueles indocumentados, em situação de exploração laboral, ou que possuam apenas documentos vencidos ou do país de origem. Ademais, ela fere o artigo 258, inciso IV, da Portaria GM/MS nº 2.236/21, citado na Nota; o artigo 13, inciso I da Portaria GM/MS nº 940/11, que regulamenta o Sistema Cartão, além de ferir o disposto no artigo 4º da Lei nº 13.445/17, ou Lei de Migração, que estipula o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória. Isso significa atender inclusive migrantes que não apresentem quaisquer documentos. Estabelecer, em orientação do Ministério da Saúde, uma lista de documentos válidos para confecção do Cartão SUS, ainda que a título de elencar possibilidades burocráticas, pode abrir precedentes para a violação de direitos nos atendimentos na ponta.
- Apesar das menções na Nota Técnica à noção de cultura, orientando profissionais e gestores a buscarem “contato com as redes locais para a oferta de mediação cultural” (item 6.2) e “promovendo uma escuta culturalmente sensível” (item 6.4), não se apresentam estratégias concretas de aproximação entre os profissionais e as pessoas, ou como se dará a instrumentalização da noção de cultura. Trabalhos recentes de antropólogos têm demonstrado que a instrumentalização descuidada da noção de cultura e de interculturalidade pode produzir vieses racistas, essencializantes e reforçar estereótipos de diversos tipos em relação a migrantes internacionais. Assim, a nota não indica de maneira concreta estratégias de enfrentamento das questões cultural e linguística para a atenção a ser ofertada a essa população.
Nossa recomendação é que a Nota Técnica indique possibilidades de inclusão de profissionais de outras áreas de conhecimento na equipe de saúde na atenção básica, a fim de garantir acesso, acolhimento e cuidado às pessoas em tais situações. Dentre os especialistas, citamos sobretudo profissionais de saúde migrantes, mas também profissionais de antropologia, tradutores e outros, em respeito aos princípios da equidade e da integralidade do SUS. A forma de inclusão dos/as profissionais se faria em conformidade com as possibilidades de cada ente municipal, podendo incluir contratações diretas, temporárias ou através de concurso público, e/ou convênios com instituições de ensino superior em que esses especialistas estejam disponíveis. Além disso, também recomendamos o aprofundamento do debate sobre a instrumentalização da noção de cultura que orientará a implementação dos programas de mediação cultural, contando com participação da Associação Brasileira de Antropologia.
- Por fim, cabe ressaltar a urgente necessidade de fortalecimento das iniciativas de educação continuada voltadas aos/às profissionais atuantes na ponta, dos serviços de saúde incluindo tal temática. Para tanto, é preciso que as equipes que recebem esse contingente populacional possam estar sensíveis às suas demandas de saúde, respeitando as diferenças e garantindo o cuidado de modo pleno, considerando a diversidade dos/as migrantes.
Ressaltamos a importância do incentivo a programas de mediação cultural na APS, mas consideramos igualmente relevante a reflexão sobre os princípios que regem o SUS e que orientam a redação da Nota Técnica, bem como as ações de equidade, de maneira a não torná-los instrumento de aprofundamento das desigualdades de acesso, de iniquidades e de potenciais violações de direitos.
Para realização do que aqui é proposto, A Associação Brasileira de Antropologia, através dos seus Comitês que subscrevem essa nota, se coloca à disposição do Ministério para qualificar o debate sobre as ações e políticas de equidade para migrantes internacionais no SUS.
Brasília, 28 de maio de 2024.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA); seu Comitês de Migrações e Deslocamentos; e seu Comitês de Antropologia e Saúde
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