REPÚDIO À FORMA COMO VEM SENDO CONDUZIDO O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DE PLANOS DE MANEJO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO PELO INSTITUTO ESTADUAL DE FLORESTAS DE MINAS GERAIS (IEF-MG)
O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem por meio desta nota repudiar a forma como tem sido conduzido o processo de elaboração de planos de manejo de unidades de conservação (UCs) do estado de Minas Gerais pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) e empresas privadas de consultoria[1]. Tal condução se coaduna à prática recorrente do IEF-MG, que insiste em invisibilizar a contribuição dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) para conservação de áreas protegidas e em negar seus direitos territoriais e de acesso à informação, consulta prévia e participação social.
É importante destacar que, historicamente, o IEF-MG é orientado por uma postura política de adequação[2] das questões ambientais aos interesses de grandes empreendimentos econômicos. Conduta sustentada por ações voltadas para uma ecologia da expropriação[3] de distintos grupos étnicos que têm UCs sobrepostas a suas terras tradicionalmente ocupadas. Tal conduta vem intensificando conflitos fundiários e territoriais preexistentes, colocando em risco a reprodução social e econômica das comunidades tradicionais e criando situações de injustiça e racismo ambiental.
Desde 2014, o IEF-MG faz parte da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais (CEPCT-MG), instituída pelo Decreto nº 46.671 de 16 de dezembro de 2014, fazendo parte também da Câmara Técnica de Conflitos Socioambientais entre UCs e PCTs, que integra a sua estrutura. Entretanto, o Instituto não tem demonstrado predisposição de construção de Termos de Acordo, tampouco de cumprimento de acordos construídos coletivamente, não informa os PCTs sobre ações relativas às UCs sobrepostas às suas terras e ignora tanto a legislação de proteção e salvaguarda destes grupos, quanto as atuais indicações jurídicas da Procuradoria Federal do ICMBio nº 175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, que versa sobre a compatibilização da presença de PCTs em UCs de uso integral.
TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS E UCs
Atualmente, estão sendo realizados os planos de manejo das seguintes unidades de conservação no estado de Minas Gerais: 1) Parque Estadual Veredas do Peruaçu, 2) Parque Estadual Lagoa do Cajueiro, 3) Parque Estadual Mata Seca, 4) Parque Estadual Verde Grande, 5) Reserva Biológica Serra Azul e 6) Parque Estadual Sete Salões. Dentre estas áreas protegidas, o Parque Estadual Sete Salões teve, em fevereiro deste ano, seu plano de manejo aprovado pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM). Quanto às outras UCs, as oficinas de elaboração do plano de manejo já foram realizadas e a construção do documento final está em andamento. Estes processos foram construídos sem o conhecimento, a consulta e a participação dos povos e comunidades tradicionais afetados por estas UCs.
Cabe ressaltar que tais UCs apresentam longo histórico de conflitos devido à criação das mesmas sobre as terras tradicionalmente ocupadas e preservadas por comunidades tradicionais vazanteiras, veredeiras, quilombolas e povos indígenas Xakriabá e Krenak. A criação destas UCs foi condicionada às compensações ambientais de grandes empreendimentos econômicos, como o Projeto de Fruticultura Irrigada Jaíba e a UHE Aimorés. Ou seja, são desdobramentos dos danos ambientais gerados por estes mesmos empreendimentos.
A área do Parque Estadual Sete Salões (6) é reivindicada como território sagrado e, portanto, terra tradicionalmente ocupada pelo povo Krenak. Desde 2004, tem sido objeto de estudo para a demarcação da Terra Indígena Krenak Sete Salões, seguindo acordo estabelecido entre MPF/MG e FUNAI. Em 2016, a TI Krenak Sete Salões foi identificada e delimitada, porém, até a presente data a demarcação não foi efetivada [4].
As UCs que fazem parte do Sistema de Áreas Protegidas Jaíba (2 a 5) sobrepõem-se às terras tradicionalmente ocupadas das comunidades vazanteiras de Pau Preto, Pau de Légua e vazanteiras-quilombolas da Lapinha. Tais comunidades vêm buscando desde 2006, por meio de processo mediado pelo MPE-MG, a reconversão das UCs de proteção integral em UCs de uso sustentável. Sem acordo com o IEF-MG, estes grupos se encontram confinados às margens e ilhas do rio São Francisco[5], e fazem parte do movimento dos Encurralados pelos Parques. Hoje, o movimento se auto-intitula Vazanteiros em Movimento.
Já o Parque Estadual Veredas do Peruaçu (1), localizado próximo ao território Xakriabá, foi sobreposto às terras tradicionalmente ocupadas por comunidades veredeiras, que vivem atualmente nas grotas e margens das veredas.
PLANOS DE MANEJO: ADEQUAÇÃO E RACISMO AMBIENTAL
As oficinas de elaboração dos planos de manejo ocorreram em formato remoto e seguiram o seguinte calendário: Parque Sete Salões (08 a 14 de junho de 2021), ReBio Serra Azul (13 a 17 de dezembro de 2021); PE Lagoa do Cajueiro (17 a 21 de janeiro de 2022); PE Mata Seca (24 a 28 de janeiro de 2022) e PE Verde Grande (31 de janeiro a 04 de fevereiro de 2022).
Dentre as violações do ordenamento jurídico observadas neste processo estão ausentes o direito à consulta prévia, livre e esclarecida, conforme preconizada pela Convenção 169 da OIT/ONU; a proteção pelo Estado das manifestações culturais materiais e imateriais destes grupos étnicos, conforme artigos 215 e 216 da Constituição Federal Brasileira; a solução e/ou minimização de conflitos gerados por UCs, conforme Decreto Federal 6040 de 2007 e Lei Estadual 21.147 de 2014.
Além da legislação, o processo todo apresenta uma série de irregularidades referentes ao Roteiro Metodológico para Elaboração e Revisão de Planos de Manejo das Unidades de Conservação Federais do ICMBio (2018), documento norteador do processo de elaboração dos planos de manejo em questão. Dentre as irregularidades, constatam-se:
- A ausência de acesso à informação clara a respeito dos planos de manejo. Tal violação incidiu não somente sobre PCTs afetados pela UCs, mas se estendeu também à CEPCT-MG e às instituições públicas responsáveis por regularizações fundiárias, que fazem parte da Câmara Técnica de Conflitos Socioambientais, junto ao IEF-MG, como: INCRA, FUNAI, SPU, MPE, MPF, etc;
- A não realização de oficinas preparatórias com os PCTs para a elaboração dos planos de manejo, conforme indicado na página 59 do Roteiro do ICMBio (2018), fato que compromete todo o processo já realizado, principalmente no que diz respeito à definição de zoneamento e prioridades de gestão das UCs;
- A ausência da participação social efetiva dos PCTs ao longo de todo o processo de elaboração dos planos de manejo em andamento. As diretrizes básicas relacionadas à participação social, previstas no Roteiro do ICMBio (2018), conforme item 2, páginas 16 e 17, foram completamente ignoradas pelo IEF-MG e empresas contratadas, que preconiza:
- Assegurar a participação efetiva das comunidades tradicionais e grupos sociais relacionados à UC, valorizando o conhecimento tradicional e local e harmonizando interesses socioculturais e conservação da natureza;
- Garantir a transparência e a disseminação de informações sobre o processo de elaboração do plano de manejo e sua adequação a cada realidade local, buscando o esclarecimento prévio e a divulgação de informações, em linguagem adequada as populações tradicionais e aos grupos sociais relacionados à UC;
VIII. Buscar a participação das representações locais dos indígenas e quilombolas, quando a UC envolver sobreposição com terras indígenas ou terras de remanescentes de quilombos, incluindo o diálogo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ou Fundação Cultural Palmares (FCP).
Frente a este contexto, o Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da ABA, considerando que se configuram em formas de acomodação dos procedimentos visando o favorecimento a determinados segmentos em detrimento dos direitos reconhecidos formalmente dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, além de racismo ambiental, vem requerer às instituições públicas do Estado de Minas Gerais a adoção de medidas administrativas e/ou judiciais, que visem:
- a anulação dos processos em andamento e sua readequação de acordo com o Roteiro Metodológico para Elaboração e Revisão de Planos de Manejo das Unidades de Conservação Federais (ICMBio 2018);
- a incorporação, por parte do IEF-MG, das indicações jurídicas da Procuradoria Federal do ICMBio nº 175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, que versam sobre a compatilibilização das atividades de PCTs com os objetivos das UCs de proteção integral e sua permanência em casos de sobreposições territoriais;
- a garantia da informação prévia, livre e informada aos PCTs, conforme a convenção 169 da OIT;
- a garantia da participação da CEPCT-MG e lideranças comunitárias afetadas por estas UCs durante todo o processo de elaboração do plano de manejo; e
- a realização das oficinas de forma presencial, uma vez que a maioria das comunidades tem problemas de acesso à internet e aos equipamentos necessários.
Brasília, 14 de março de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos
Leia aqui a nota em PDF.
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[1] Empresa Arcadis e STCP Engenharia de Projetos LTDA.
[2] Zhouri, Andréa; Laschefski, Klemens & Pereira, Doralice (Orgs.). A Insustentável Leveza da Política Ambiental: desenvolvimento e conflitos sócio-ambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
[3] Brockington, Dan & Igoe, Jim Expulsão para Conservação: uma visão global. Conservation & Society, vol. 4, No. 3 (julho-setembro de 2006), pp. 424-470.
[4] http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/conflito/?id=537 e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/mg-povo-indigena-krenak-segue-lutando-por-reconhecimento-e-demarcacao-total-de-seu-territorio-tradicional/
[5] Anaya, Felisa C.; Espirito-Santo, Mário M. Protected areas and territorial exclusion of traditional communities: analyzing the social impacts of environmental compensation strategies in Brazil. Ecology and Society, v. 23, p. art8, 2018.