A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por intermédio de seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e sua Comissão de Assuntos Indígenas, manifesta repúdio ao avanço do Projeto “Potássio Autazes”, conduzido pela mineradora Potássio do Brasil, subsidiária do grupo canadense Forbes & Manhattan, no estado do Amazonas. Apresentamos nossa preocupação diante da exploração de mina de potássio no referido município de Autazes, com graves ameaças ao povo indígena Mura.
O projeto afetará três áreas indígenas: Paracuhuba (demarcada), Jauary (em processo de demarcação) e o território da Aldeia Soares/Urucurituba (reivindicado e autodemarcado pelo povo Mura). Apesar do argumento de que o empreendimento contribuirá para o desenvolvimento da região, o EIA-Rima apresentado ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM, órgão estadual que emitiu a licença para funcionamento da mineradora, destaca vários tipos de impactos e danos sociais e ambientais, que incluem a especulação imobiliária, perda do acesso à terra, em decorrência da construção de infraestrutura portuária, da contaminação do solo e das águas superficiais e subterrâneas.[1] Não faltam exemplos dos danos sociais e ambientais causados por empreendimentos minerários na Amazônia e em outros estados da federação. Caso emblemático é o Projeto Grande Carajás, implementado na década de 1980, com área de 900 mil km2, entre os estados do Pará, Tocantins e Maranhão, e que envolve uma cadeia produtiva (mineração, estradas de ferro, hidrelétricas, produção e queima de carvão) de alto impacto ambiental e social, que gera efeitos sobre unidades de conservação, terras indígenas, de quilombolas e assentamentos da reforma agrária. Além da população rural atingida por toda esta logística e sua mecânica de violência, o funcionamento das minas com frequência resulta em vazamentos de rejeitos, dentre outras ações poluentes, contaminando solos, rios, ecossistemas e moradores das comunidades locais com metais pesados, conforme denunciam as várias pesquisas realizadas por cientistas ligados a instituições como a FIOCRUZ, INPA, UFPA, dentre outras. Os vazamentos atingem importantes bacias hidrográficas que deságuam no Estuário Amazônico e avançam em direção ao Oceano Atlântico. Portanto, trata-se de eventos que afetam a saúde planetária, e que sistematicamente violam direitos fundamentais da vida humana, comprometendo direitos das gerações atuais e futuras.
A este projeto somam-se outros, de construção de hidrelétricas ao longo da calha do rio Madeira, como as UHE Santo Antônio e Jirau e outras já projetadas, que têm trazido graves prejuízos aos direitos territoriais das comunidades ribeirinhas e indígenas, como é o caso contundente do povo Mura, que habita a área de influência desses empreendimentos e a quem serão negados direitos fundamentais, como o direito à água potável, ao território e à vida digna.
Sendo assim, a ABA vê com extrema preocupação o avanço desses projetos desenvolvimentistas sobre territórios étnicos e de comunidades tradicionais numa das principais bacias hídricas da Amazônia. Surpreende-nos, portanto, o apoio explícito a esse projeto por parte da gestão da Universidade Federal do Amazonas, ao assinar um protocolo de intenções com a empresa Potássio do Brasil, no dia 23 de março de 2023. Tal documento representa um apoio à atividade de mineração em Autazes e ignora a presença do povo indígena Mura na área afetada. A parceria com a mineradora e a defesa do “Projeto Autazes Sustentável” provocou mal-estar entre pesquisadores da própria instituição pública comprometidos com a soberania dos territórios das comunidades indígenas e tradicionais, a segurança hídrica e alimentar, e a proteção do meio ambiente[2]. Esta adesão, sem a possibilidade de uma discussão mais ampla com a sociedade, em especial com as categorias sociais e étnicas que serão afetadas pelo empreendimento, pode resultar em contextos de conflito ainda mais amplos. Ressalta-se, ainda, que o Projeto “Potássio Autazes” tem sido intensamente denunciado por organizações que representam as comunidades locais, como a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI), além de cientistas de instituições como o INPA e a própria UFAM, os quais, pela sua qualificação como estudiosos das questões em causa, deveriam ser escutados.
Paradoxalmente, neste momento o Brasil se prepara para realizar a Cúpula da Amazônia, evento que tem como objetivo construir diálogo entre os presidentes dos oito países que integram a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), para planejar ações e políticas em comum, visando a sustentabilidade e a consolidação de pactos para garantir a proteção do bioma amazônico e de seus povos e comunidades tradicionais. Com o slogan “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia”, o evento dará ênfase à participação da sociedade civil e dos movimentos sociais. Conforme tem sido destacado em manifestações no Brasil e no exterior, os povos indígenas têm papel fundamental na construção de uma política socioambiental que contribua para o enfrentamento da crise climática. Portanto, vemos com preocupação a continuidade de políticas desenvolvimentistas e neoextrativistas que acentuam, ainda mais, a vulnerabilidade social e ambiental dessas comunidades, reforçando a injustiça e o racismo ambiental e institucional, a insegurança hídrica e territorial. A insistência na manutenção de tais políticas viola, sobretudo, direitos constitucionais com estatutos de cláusulas pétreas, previstos na nossa Carta Cidadã e nos Tratados e Convenções Internacionais sobre os Direitos dos Povos Indígenas, como a Convenção 169 da OIT, e as metas da Agenda 2030.
Somando-se a esse contexto e agravando-o, a insistente pressão no Congresso Nacional para a aprovação do PL490/07, conhecido como “PL do Marco Temporal”, impõe a urgência da demarcação das TI’s, mediante a fragilidade, neste caso, do povo Mura. Vale destacar que, para além das ações minerárias previstas para Autazes, a constante pressão exercida pela pecuária na região potencializa o contexto de urgência da demarcação das terras dos Mura.
A ABA se manifesta quanto a necessidade de garantia dos direitos constitucionais do povo Mura da TI Soares e destaca a urgência de celeridade por parte da FUNAI no processo de demarcação do território da Aldeia Soares e da comunidade Urucurituba, situadas às margens do rio Madeira, na área onde a empresa Potássio do Brasil pretende implementar uma indústria de exploração de mina de potássio.
Por fim, reiteramos nosso compromisso com a defesa dos direitos dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia.
Brasília, 05 de junho de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos
Leia a nota em PDF aqui.
[1] https://amazoniareal.com.br/especiais/projeto-autazes/
[2] https://amazoniareal.com.br/lista-pro-mineracao-de-potassio/