Em 22 de dezembro de 2021 o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)/Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) publicou a INSTRUÇÃO NORMATIVA N.111/2021 que dispõe sobre os procedimentos administrativos a serem observados pelo INCRA nos processos de Licenciamento Ambiental de obras, atividades ou empreendimentos em terras quilombolas.
A ABA e seu Comitê Quilombos questiona o conteúdo e o momento da publicação da referida IN em pleno contexto de acirramento da pandemia de COVID 19, do desmanche institucional da Fundação Cultural Palmares (FCP) e da paralisação dos processos de regularização fundiária dos territórios quilombolas pelo INCRA. Este ato administrativo é extremamente ameaçador às comunidades, pois simplifica os processos de licenciamento ambiental e acelera a implementação de empreendimentos em terras quilombolas, destituindo desta forma, direitos conquistados e garantidos pela Constituição Federal de 1988 e acordos internacionais.
Ademais, a IN é resultado de um processo autoritário, feito em segredo, sem informações prévias, participação e debate público, desconsiderando assim processos elementares que caracterizam a vida democrática. Ocorre também em meio a um sistemático desmanche do sistema ambiental do país, já denunciado diversas vezes pela ABA (Contra o desmanche ambiental e a violência decorrente, de 01 de agosto de 2019 e Nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, projeto de Lei 3.729/2004). Chama à nossa atenção a data de publicação da Instrução Normativa, às vésperas do recesso administrativo natalino, dificultando ações políticas e jurídicas contra a medida.
A IN desrespeita princípios e direitos constitucionais e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que recomenda a participação ativa e consciente dos povos em todas as medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza responsáveis pelas políticas públicas e programas que lhes sejam concernentes, objetivando o consentimento acerca das medidas propostas.
Entretanto, pelo novo rito, a participação das comunidades fica restringida à tomar ciência somente após análise preliminar do interesse do empreendedor pelo INCRA, conforme explicitado a partir da Seção II do documento, em seu Artigo 8º, que prevê “oitivas” para conhecer os documentos já consolidados e produzidos pelo próprio empreendedor (plano de trabalho, ECQ, PBAQ, relatório final etc), com o objetivo de “esclarecer sobre o empreendimento e os impactos socioambientais nas terras quilombolas”. Destaca-se que tais documentos, já chegam ao conhecimento dos quilombolas definitivamente preenchidos e homologados pelas instâncias governamentais. Nenhum artigo do documento assegura o debate, discussão ou manifestação destes documentos pelas comunidades previamente ao processo.
Asseveramos que OITIVA realizada nestes termos NÃO corresponde à CONSULTA PRÉVIA LIVRE E INFORMADA conforme determina a Convenção 169 da OIT. Trata-se de uma deturpação estratégica do princípio da participação por parte do governo federal e dos interessados nas terras quilombolas. Além disto, o Artigo 8º da IN prevê ainda que, em casos em que a Oitiva não ocorra, a Autarquia terá o poder de decisão pelas comunidades quilombolas.
Nestes termos, a Oitiva se torna um simulacro de participação das comunidades, um mero instrumento para legitimar o que não pode ser legítimo, uma vez que de fato as decisões já estão definidas antecipadamente entre empreendedores e o Incra.
Conforme a IN, o processo de licenciamento ambiental ocorre por mecanismos não inclusivos e pré-determinados por oitivas relativas e sem caráter vinculado à decisão, independente da aprovação ou reprovação do licenciamento. Atribui exclusivamente ao INCRA o poder de decisão entre RECOMENDAR O LICENCIAMENTE OU APONTAR EVENTUAIS ÓBICES, conforme registrado na Sessão IV, artigo 12.
Ou seja, a instrução induz previamente o prosseguimento das atividades, independentemente do empreendimento e de seus impactos, pois supõe que mesmo diante de “EVENTUAIS ÓBICES”, medidas CORRETIVAS poderão ser indicadas pelo INCRA. Entretanto, NENHUM esclarecimento sobre as situações de reprovação do Relatório Final de Execução é considerado na IN, promovendo antecipadamente a viabilidade de empreendimentos de qualquer natureza nos territórios quilombolas.
Preocupa-nos ainda o conteúdo da Seção III – artigo 10, que contempla o caso de empreendimentos, localizados em áreas nas quais tenham sido realizados estudos anteriores, a possibilidade de se utilizar estes dados no processo de licenciamento ambiental, cabendo ao INCRA fazer as adequações e complementações necessárias, relativas ao impacto do empreendimento. Na prática, isso significa que em certas situações sequer existirão estudos específicos atualizados em torno da proposta de empreendimento.
Ocorre que as comunidades têm enfrentado transformações radicais em seus territórios nas últimas décadas, justamente pela morosidade dos processos de regularização pelo INCRA, o que tem facilitado a entrada de empreendimentos em seus territórios causando alto custo social e ambiental. Um estudo produzido em tempo anterior, em outro contexto histórico, político e social, pouco esclarece sobre os conflitos do presente. Ademais atualizá-lo sem qualquer trabalho de observação, envolvendo pesquisas in loco, resultará seguramente em um documento sem fundamento técnico-científico.
Cabe ainda indagar sobre quais procedimentos metodológicos utilizados para as definições da “Área Diretamente Afetada (ADA)” do Anexo I da IN. As áreas apresentam-se como meras convenções, previamente fixadas, para avaliação das extensões dos impactos do “meio biótico” e meio socioeconômico”, desconsiderando os territórios e as relações territorializadas das comunidades quilombolas. Entretanto, essa lógica afeta de antemão qualquer diagnóstico da área pretendida para a instalação do empreendimento, enquadrando a avaliação dos impactos diretos em determinadas áreas sem considerar afetação de outras áreas físicas no território quilombola. Desta forma, os estudos não podem ser meramente complementares, mas devem, como um princípio norteador do licenciamento ambiental, identificar os efeitos de ordem física, biológica e socioeconômica; garantindo, em cada rito do licenciamento, a discussão, a consulta e a construção democrática e progressiva das decisões e a prevenção de possíveis dados ambientais aos territórios tradicionais.
Destaca-se ainda a omissão da IN com relação às situações de comunidades quilombolas certificadas pela FCP e que se encontram em diferentes etapas do processos administrativo de regularização fundiária pelo INCRA. Desconsiderar este dado parece configurar em vício processual das movimentação dos processos para obtenção de anuências, sem mensurar os danos ambientais, bem como as afetações nas práticas culturais e econômicas destas comunidades de sua segurança e qualidade de vida futura.
Desde modo, avaliamos que a IN é mais um dos procedimentos institucionais voltado para a liberação dos territórios tradicionais para atividades do agronegócio, de mineradoras, de produtoras de celulose, geradoras de energia elétrica e obras de infraestrutura.
Esses procedimentos têm sido burocratizados e centralizados, baseados em diagnósticos que seguem um modelo predefinido, resumindo-se a documentos pré-produzidos eletronicamente que necessitam somente ser preenchidos. A centralização do processo no INCRA Nacional, em Brasília, sem o envolvimento das unidades regionais da autarquia dificulta uma percepção da singularidade e o acompanhamento das situações localizadas.
Trata-se de um esvaziamento da complexidade do licenciamento ambiental que deve ser exigida em relação à situação territorial e cultural dos quilombos.
Diante do exposto, a ABA solicita a suspensão da Instrução Normativa 111/2021 e dos efeitos decorrentes do ato em vigor por ferir radicalmente direitos constitucionais e internacionais dos quilombolas.
Brasília, 26 de janeiro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos
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